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A violência sexual e a violação de menores, uma discussão sobre os conceitos (1)

Conceição Osório

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 33-34, Fevereiro-Maio de 2011

 

Este artigo é o primeiro de uma série e pretende apresentar os resultados de uma pesquisa de curta duração sobre violação sexual de menores, que decorreu em Maputo.[1] Começaremos por referir algumas das questões conceptuais que nos parecem contribuir para a reflexão sobre a violência sexual na dimensão de violação sexual de crianças, nomeadamente a ambiguidade contida no conceito de abuso sexual e sua classificação. Procuraremos demonstrar que a noção de abuso sexual utilizada por muitos autores não é, pela sua ambivalência, operativa, quando se trata de analisar a violência sexual cometida contra crianças.

A literatura escrita em Moçambique sobre violação sexual de menores do ponto de vista da relação entre idade, moldura penal e articulação intra e inter institucional, ou se encontra dispersa em textos parcelares que avaliam o estado da implementação da legislação e dos mecanismos institucionais, ou são demasiado abrangentes no que respeita à discussão de várias dimensões enquadradas pela violência sexual. Raros são os trabalhos que têm como objecto a discussão dos conceitos adoptados, e mais raros ainda, os que analisam as interferências das representações culturais nas práticas institucionais.

Para além da literatura nacional existente sobre o assunto serão analisados alguns trabalhos realizados na região e no mundo.

Os estudos em Moçambique

Numa pesquisa sobre violência e abuso sexual de crianças, Brigitte Bagnol procura reflectir sobre a relação entre violência e abuso sexual, fazendo referências às formas como a legislação diferencia os dois conceitos (Bagnol, 2004). Não fica claro, no entanto, que conteúdos constam e separam os dois conceitos.

Referindo-se à violação sexual como forma de abuso, a autora afirma “o abuso sexual existe em várias formas sendo este em troca de pagamento” (Bagnol, 2004: 12). Ora, parece-nos que, como querem vários autores citados ao longo deste texto, o abuso sexual abarca um conjunto diferenciado de manifestações de violência contra as crianças, permitindo uma interpretação (ao distinguir abuso de violência sexual) que dilui o carácter violento do próprio abuso, e mais do que isso, que oculta a estrutura das relações sociais que têm o poder como núcleo. Se, por exemplo, tomarmos em conta as percepções sociais dos casamentos prematuros, fica evidente que com o argumento do “consentimento” da vítima (no sentido que o trabalho que temos vindo a referir indica), estamos perante uma forma de abuso que pode não implicar violação. No entanto, o que existe nas uniões forçadas de crianças com adultos é uma forma de violência sexual no contexto da violência de género.

Bagnol descreve, em seguida, as variáveis que determinam e condicionam a condenação do abuso sexual, identificando o pagamento de uma multa ou o casamento como forma de anular o crime. Num outro trabalho, de Collet (2010), sobre a violência sexual na província de Tete, cita-se a fala de um entrevistado que vai no mesmo sentido:

“Nalgumas zonas, o abuso sexual está sendo visto como uma ampliação das tradições. Aplicar para eles essa linhagem de abuso sexual é quase uma agressão, porque para eles o abuso sexual não é problema, problema é quando a menina não casar. Se um pai tem uma filha de 12, 13, 14, 15 anos de idade, se aparecer um homem que quer casar a ela, o pai diz ‘tudo bem’, porque a honra e a dignidade das suas tradições foram preservadas” (Collet, 2010).

A escola e a casa são considerados os espaços em que o abuso sexual é mais frequentemente perpetrado, seja sob a forma de assédio (nas escolas), seja por razões que têm a ver com novos mitos (enriquecimento familiar), com as dívidas e com o já identificado “casamento” prematuro.

O abandono da escola, principalmente pelas alunas, pode indiciar práticas de violência sexual aí desenvolvidas como o assédio e a violação sexual, que podem também traduzir formas mais subtis de violência na família, manifesta na divisão de trabalho na casa, e na ritualização (silenciosa ou não) para a conformação de papéis subalternos. A transferência desses papéis para a escola, através da construção de modelos de dominação, desenvolvidos anteriormente no seio familiar, geram oportunidades para a produção da violência nas escolas. Uma auscultação realizada pelo MEC junto das Unidades de Género (Ministério de Educação e Cultura, 2008) em cinco províncias do país, mostrou que 70% os membros deste sector e das alunas entrevistadas afirmaram que nas escolas muitos professores assediam e abusam sexualmente das alunas e que uma grande parte desses casos resulta em gravidez. Também neste relatório é mencionada a existência da “promessa de casamento”, que provoca o abandono da escola e a entrega das meninas aos homens logo que a primeira menarca tenha lugar.

No entanto, existe um penoso silêncio que encobre os casos de violência sexual, não tendo sido ainda possível elaborar informação estatística sobre o assunto nem desencadear medidas punitivas. Mais uma vez é interessante constatar a impunidade destes casos e a cumplicidade das famílias. O relatório do Ministério da Educação descreve ainda situações em que a vítima não denuncia a violação por medo de ser estigmatizada pela família e comunidade, estigma esse que só desaparece quando o agressor se case ou viva em união de facto com a rapariga. Isto é, a violação e os traumas daí advindos são agravados com a obrigação social/cultural que a vítima tem de aceitar partilhar a casa com o seu violador, ocultando-se e despenalizando-se a prática do crime. Estes casos resultam de representações culturais da inexistência de violência ou violação sexual, desde que exista uma compensação. Tal como temos vindo a referenciar, a construção das identidades de género é percorrida por uma relação de poder permissiva à violação de direitos humanos. Ao não se tratar a violência sexual com uma abordagem de género, continua-se a naturalizar (como aliás o texto explicita, através, por exemplo, da caracterização do violador como uma pessoa “normal”) a violência sexual exercida sobre as jovens numa lógica de dominação patriarcal.

Tal como outra literatura, este relatório evidencia que “existe uma falta de clareza entre os conceitos de assédio e abuso sexual, salvo quando este resulta em gravidez” (Ministério de Educação e Cultura, 2008: 9). Esta situação, que poderia ser resolvida, pelo menos do ponto de vista de conhecimento da realidade, com a elaboração de um conceito de violência sexual que incluísse todas as suas dimensões, continua a permitir, como aliás é referido pelo relatório que temos vindo a mencionar, que as autoridades policiais aceitem a retirada da queixa por parte dos familiares, considerando que no actual Código Penal em vigor em Moçambique não existe a figura de abuso sexual.

Um outro trabalho que analisa detalhadamente a situação dos direitos da criança em Moçambique (Rede Criança, 2009) chama a atenção para a possibilidade de violação de direitos da criança, considerando que a lei moçambicana define a responsabilização criminal para crianças entre os 16 e os 18 anos, contrariando, assim, a Convenção dos Direitos da Criança que estabelece o limite até aos 18 anos. Referindo-se expressamente à violação sexual de crianças o relatório identifica-a como uma das dimensões mais visíveis da violação dos direitos das crianças, mas tal como os outros estudos, não se estabelece uma conceptualização de abuso sexual permitindo, assim, a construção de uma diversidade de situações que não ajudam a analisar a realidade.

Uma pesquisa sobre “casamentos” prematuros põe em evidência a estrutura familiar e social que os promovem (Nhantumbo et al., 2009). Referindo-se aos factores que motivam a existência de casamentos prematuros, o texto menciona “o interesse das raparigas em se tornarem económica e socialmente independentes” e, ainda, “o aparente interesse das raparigas pelo casamento pode estar relacionado com o facto da integração do indivíduo na vida adulta ter como referência eventos fisiológicos e culturais…” (Nhantumbo et al., 2009: 13).

No entanto, a constatação que os interesses da rapariga em aceder a recursos pode ser uma das razões que explica a existência de casamentos prematuros, deve ser realizada, na nossa opinião, no contexto das relações sociais de género, que configuram como natural a construção de novas dependências. Isto significa que as uniões forçadas de crianças com adultos apenas aparentemente geram o acesso das raparigas a mais recursos porque, na realidade, esses recursos como a terra, o ter filhos e deles cuidar, são parte da construção de uma identidade de género marcada pela subalternidade.

Considerando que a passagem para a idade adulta através do casamento prematuro, é uma forma de manter a ordem patriarcal, ou seja, de limitar os direitos das raparigas e mulheres a uma estrutura e hierarquia que tem como componente principal o poder, constata-se que o aparente carácter emancipatório e de passagem à idade adulta contido neste tipo de união serve, fundamentalmente, para manter e reproduzir a dominação masculina. Definir o casamento prematuro como uma “estratégia de emancipação económica e social da rapariga” parece-nos um erro. Primeiro, porque esta união não implica um consentimento, mesmo quando aparece como tal (por força da construção das identidades sociais femininas e masculinas no contexto familiar), e segundo, porque significa na realidade a manutenção de mecanismos de solidariedade inter ou intra familiar suportados pela violação de direitos. Ao ignorar que a manutenção de uma “paz” comunitária e familiar se realiza pela submissão dos indivíduos a uma estrutura hierarquizada em função do sexo e da idade e, ao não ter em conta as mudanças que se estão a produzir nessa estrutura, constrangemos a observação da realidade a uma estabilidade fatalista da subalternidade feminina.

A mesma questão se coloca, e carece de reflexão, quando se perspectiva a violência sexual no contexto da violação dos direitos humanos, e se ensaiam tentativas de constranger o seu exercício ao modelo cultural. A relativização dos direitos em função da cultura ou a procura de compromissos resultam quase sempre na manutenção de uma estrutura de dominação, que tem a sua fonte de legitimação numa tradição que procura reproduzir-se através da renovação e/ou recuperação de hierarquias e valores restritivos de direitos. Há, contudo, estudos (Osório e Silva, 2008, 2009) que mostram sinais de que as estruturas de género que se querem culturalmente justificadas por um modelo inamovível estão em constante mudança, registando-se já sinais de ruptura e contestação. Quando nalguns locais da província de Manica muitas crianças abandonam as suas casas para não serem entregues ao homem a quem foram prometidas, ou quando em Nampula e noutros locais da zona centro e norte, lideranças e famílias afirmam criticamente que “agora elas e eles casam na rua”, mostram inequivocamente que existem alterações na ordem de género que os investigadores e os fazedores de políticas devem aprofundar e ter em conta na definição das estratégias. São estas práticas que podem servir de base a uma reflexão e a um debate alargado que desoculte as novas realidades e que estimule a elaboração de políticas contra culturais.

Com o fim de se evitar a ambiguidade na análise do “casamento” prematuro como parte constitutiva de uma ordem social determinada, seria interessante inscrevê-lo numa estrutura de género que tem nos rituais de iniciação um momento culminante. Nesta mesma ordem de ideias, discutir práticas socializadoras traumatizantes como o puxa puxa[2], que (embora não se inserindo na caracterização de mutilação genital) deve ser entendido como uma forma de mutilação simbólica, reduzindo o corpo da rapariga ao “serviço” sexual, poderia contribuir para romper com a cumplicidade confortável em que vivemos. Essa abordagem permitiria não apenas desconstruir o papel dos ritos na formatação de identidades de género, mas definir estratégias que tenham como alvo o acesso e o exercício dos direitos humanos.

Considerando “criança como categoria social e infância como espaço de actuação dessa categoria” (Nhantumbo et al., 2009: 20) o trabalho que temos vindo a referir, debate, de forma muito interessante, as incompatibilidades existentes entre a concepção sócio-cultural de criança e a definição adoptada na legislação. Recorrendo ao “casamento” prematuro como exemplo, o texto informa que do ponto de vista cultural, o que define criança é a dependência e a obediência aos familiares, sem possibilidades de negociação. Isto significa que a criança é um não sujeito de direitos, preparando-se através dos mecanismos de socialização que têm lugar na família e na comunidade (principalmente no que às raparigas diz respeito) para uma passagem de sujeito sem direitos para sujeito com direitos limitados pela estrutura de género. A conformação (e até a adesão) das raparigas à violência e violação sexual expressa no “casamento” prematuro, oculta uma realidade cultural fundada na discriminação e na exclusão de direitos.

Tendo como objectivo analisar o papel dos media na divulgação de manifestações de violência contra crianças no âmbito da advocacia dos direitos das crianças, o MISA Moçambique realizou um trabalho de observação da cobertura da imprensa escrita no país (MISA, 2008). No que se refere à violência sexual de crianças o estudo evidencia que a violação sexual raramente é objecto de denúncia, mantendo-se a impunidade dos agressores, principalmente quando ocorre no seio familiar e escolar. Por outro lado, o trabalho revela que os artigos que descrevem o abuso sexual contra crianças privilegiam os espaços públicos, conferindo pouco destaque aos que são perpetrados em contexto familiar. Limitando-se a relatar os factos, as reportagens, objecto desta pesquisa, não fazem enquadramento legal dos mesmos nem advogam a favor da penalização dos agressores. A ausência de abordagem crítica por parte dos media e a falta de referências aos mecanismos protectores dos direitos das crianças contribui para alimentar o silêncio social e desagravar a violação dos direitos das crianças. Saliente-se como muito importante para a protecção dos direitos das crianças, as recomendações dos autores, principalmente no que respeita “à necessidade de incluir uma abordagem de género na cobertura de assuntos relacionados com a protecção da criança” e de divulgar a violência contra crianças numa perspectiva de direitos humanos, contribuindo para o seu sancionamento social e legal (MISA, 2008: 35).

Um outro estudo que tem como objectivo a literatura produzida em Moçambique sobre violência contra menores, analisa numa perspectiva multidisciplinar a situação actual sobre os direitos humanos das crianças (FDC, 2008). O abuso sexual é entendido, tal como constatámos em outras pesquisas, num sentido mais alargado, abrangendo diferentes manifestações que têm o corpo sexuado como alvo. Considerando o abuso sexual intra familiar como o mais comum, o estudo revela que, muitas vezes, este é secundado pelo abuso sexual nas escolas, sendo as raparigas o grupo mais atingido. Mais uma vez estamos perante uma grande ambiguidade conceptual, pois se, por um lado, a amplitude na definição de abuso sexual implica que toda e qualquer forma de ofensa tendo como alvo o sexo cabe dentro dessa definição, por outro lado, quando se analisa a prática do abuso sexual ele aparece sempre relacionado com violência ou mesmo violação sexual. Estas dificuldades não se colocam apenas no campo teórico, mas na definição de políticas e mecanismos de combate à violência sexual, como se constata pela afirmação “o abuso sexual contra menores ocorre também a nível da comunidade sob forma de violação, entendida como forma de violência onde um individuo força outro a ter relações sexuais contra a vontade dessa pessoa” (FDC, 2008:19).

Como teremos também oportunidade de analisar nos artigos que publicaremos na continuação deste, algumas pessoas entrevistadas por nós representam o abuso sexual do ponto de vista do senso comum, isto é, demasiado amplificado e confuso, com consequências na aplicação arbitrária ao nível da legislação. A não identificação de abuso sexual com violência sexual permite a consideração de que pode haver abuso sexual de menores sem violência, ou seja, que em certas circunstâncias o abuso ocorre com o consentimento da vítima. Parece-nos que está implicita a esta ideia uma concepção de que a sedução e a conformação da vítima à violência aliena a questão principal, que é o facto de, subjacente aos contextos em que o abuso se produz, estar sempre presente uma relação de poder que pode conduzir ao silêncio e ao prolongamento “pacífico” e “passivo” da violência. Esta questão é tão mais importante, quanto se reconhece que a maioria das vítimas de abuso sexual são raparigas, socializadas para o serviço do “outro”, ou seja, identitariamente construídas para a subordinação.

Algumas das dificuldades que temos vindo a constatar na utilização de conceitos quando aplicados a situações particulares de violência sexual ficam claramente expressas numa pesquisa realizada na província de Tete (Collet, 2010). Em primeiro lugar é levantado o problema da não correspondência do termo violência sexual nas línguas locais, o que pode condicionar o conhecimento da realidade, se não houver um entendimento prévio entre investigadores e fazedores de políticas públicas. Também neste trabalho não fica claro o que é abuso sexual pois ao identificá-lo “como tipo de violação sexual” (Collet, 2010: 3), pode induzir à compreensão de que existem várias formas de violação sexual, com graus diferenciados de gravidade e sancionamento. A ambiguidade existente entre os termos de violência sexual e abuso sexual e a arbitrariedade na sua utilização fica resolvida se se tiver em conta a definição de violência sexual produzida pela Organização Mundial de Saúde (OMS):

“Violência sexual é qualquer acto sexual, tentativa de acto sexual, comentários ou acções sexuais não consentidas, ou acto para traficar ou acção coerciva contra a sexualidade de uma pessoa, por qualquer pessoa, independentemente do relacionamento com a vítima, em qualquer espaço, incluindo, mas não limitado ao domicílio e local de trabalho”.[3]

Esta posição surge em contradição com definições que a autora, que temos vindo a citar, retira de outras pesquisas realizadas no país, como por exemplo quando cita um estudo de Matavele que “define o abuso sexual de menores como o envolvimento de uma criança em qualquer acto ou actividade sexual, com um adulto ou crianças mais velhas, que ocorre antes da idade ou consentimento reconhecido legalmente” (Collet, 2010).

A ambivalência na caracterização entre abuso sexual e violência sexual existe também nas percepções das pessoas entrevistadas pela autora como se pode constatar: “no grupo focal com as alunas da Escola Secundária de Moatize a definição dada foi a de que “existe violência sexual e abuso sexual, então violência sexual é todo o acto envolvido com a relação sexual que se faz entre maior de idade, ao passo que abuso sexual é acto que se faz entre o maior e o menor. (….)”. E ainda “violência sexual é fazer a relação sexual sem que a outra parte queira, não só, como também fazer relação sexual com um indivíduo com uma idade menor” (Collet, 2010: 22).

O estudo evidencia também, através das falas de quadros que trabalham no sector de saúde, no sector judicial e nas organizações da sociedade civil, diferenças pronunciadas entre a caracterização de violência sexual e violação sexual, nomeadamente de haver ou não cópula.

O abuso sexual na literatura internacional: África Oriental, dois casos paradigmáticos

Na África subsariana algumas das pesquisas mais recentes procuram analisar a violação sexual de menores na sua relação com o quadro legal e com os mecanismos institucionais de defesa dos direitos humanos. Neste contexto, são questionadas as estratégias de prevenção e combate à violência sexual.

Num trabalho realizado no Quénia (ACORD, 2010), os autores constatam que embora a Constituição queniana esteja de acordo com a definição de violência em conformidade com a Declaração de Beijing e a respectiva Plataforma para Acção, o sistema de justiça mantém-se insensível, sendo esta situação expressa na fragilidade da polícia e dos tribunais em investigar os casos de violação sexual. Por outro lado, o governo mostra-se negligente em aprovar instrumentos legais e administrativos para protecção das vítimas de violação sexual, apesar do país ter ratificado instrumentos internacionais que protejem e condenam a violação sexual. O facto destes instrumentos não terem sido domesticados, ou seja, traduzidos em leis nacionais, surge como argumento para a sua não aplicação. E isto, num contexto em que a situação de conflito vivida no Quénia conduziu a que a violação sexual atingisse níveis preocupantes, o que foi agravado pelo enfraquecimento das instituições legais de protecção dos direitos humanos.

No que se refere ao sistema de administração da justiça, existem neste país o sistema de justiça tradicional informal e o legal formal. As disputas nas comunidades rurais continuam a ser reguladas pelas instâncias informais, seja pela ausência de estruturas formais locais, seja pela influência de um modelo de justiça que aparece aos olhos dos cidadãos como mais rápido e com poucos custos. A legitimidade do sistema informal de justiça tem permitido, por exemplo, que casos de violação sexual sejam dirimidos através do pagamento de uma multa. Embora as vítimas e seus familiares possam recorrer aos tribunais formais, a verdade é que mesmo os agentes de justiça reflectem na sua actuação as práticas tradicionais de regulação de conflitos. Deste modo, embora existam leis que orientam o tratamento a dar a casos de violação sexual, os agentes policiais, sob o argumento da severidade das penas, não as aplicam, sendo que muitos casos de violação sexual são geralmente retirados devido à inexistência de provas e outros são resolvidos nas esquadras sem bases legais, acabando sempre pela soltura do abusador a troco de dinheiro.[4]

No que se refere aos tribunais constata-se que neste país a violação sexual é sancionada com uma pena 15 anos de prisão no caso em que a vítima é menor. A contaminação deliberada do HIV durante a violação sexual constitui uma agravante. Contudo, apesar disso, muitos processos não chegam ao fim, pois a vítima e as testemunhas desaparecem enquanto o processo está a decorrer ou pedem clemência para o agressor, apelando para a aplicação de medidas segundo os usos e costumes. Para além destes constrangimentos devido à permeabilidade dos tribunais, o tratamento dos casos são muito morosos. As vítimas devem pagar às testemunhas para ir ao tribunal, sem o qual o caso não avança.

Tal como acontece em Moçambique, como teremos oportunidade de evidenciar mais à frente, embora exista no Quénia um sistema de protocolo a seguir pelos serviços de saúde, a sua aplicação é ainda muito deficiente e depende da sensibilização dos agentes de saúde e do conhecimento das vítimas sobre os necessários procedimentos que devem ser seguidos. Esta situação dificulta a articulação com as instâncias formais de justiça, deixando impune a maioria dos casos de violação sexual.

O mesmo trabalho da ACORD (2010) investigando também a situação no Uganda, mostra que a ausência de um consenso sobre a definição de violência sexual permite que cada investigador ou agente institucional e activistas da sociedade civil a utilizem de maneira arbitrária, com implicações no atendimento e sancionamento. Neste estudo, o termo violência sexual é usado para representar qualquer tipo de comportamento sexual que se assemelha ao abuso sexual, agressão sexual, assédio sexual e voyeurismo. O termo “violência de género” é amplamente usado como sinónimo de violência contra as mulheres.

Tal como no Quénia, existe no Uganda um sistema de pluralismo jurídico. Há, contudo, neste país, um aparato legal para tratamento dos casos de violência e violação sexual. A questão coloca-se na deficiência do sistema e no facto de a maioria da população rural recorrer às instâncias informais que se orientam pelo modelo patriarcal na avaliação dos casos.

A administração da justiça é exercida a vários níveis, incluído a polícia, o Ministério Público, os médicos legistas e os tribunais. O problema começa quando a vítima decide reportar o crime. A polícia é a porta de entrada e responsável pela investigação e a detenção do abusador, acontecendo, frequentemente, que a maioria das vítimas tem de percorrer longas distâncias até à esquadra mais próxima. Se por acaso a esquadra está situada nas adjacências do local de residência das vítimas ou dos espaços onde o crime foi cometido, o problema é que os agentes não possuem suficiente formação para lidar com casos de violência sexual, não tendo muitas vezes conhecimento nem habilidades específicas para atender as vítimas (muitas vezes traumatizadas), nem conhecimento do quadro jurídico-legal. No caso em que as esquadras estão distantes do local onde tiveram lugar as ocorrências, por estarem mal equipadas e sem recursos, chegam a solicitar dinheiro e meios de transporte às vítimas, para se deslocarem ao local do crime ou irem deter o abusador.

A prova de evidência resulta num relatório policial, sem qualquer suporte médico específico para as vítimas de violência sexual, tendo estas, ainda, de suportar custos adicionais para obterem o relatório médico. Este documento requer uma assinatura e dados do médico, contudo estes recusam-se a assinar para não serem chamados a depor em tribunal, somente o fazendo a troco de dinheiro. Assim sendo, o resultado que chega ao Ministério Publico é geralmente inadequado e muitos processos são arquivados por falta de provas. Se o caso avança encontra outros constrangimentos, como a demora, a corrupção e os altos custos judiciais para a vítima. Depois de 360 dias sem julgamento, os suspeitos devem ser soltos.

Alguns exemplos de pesquisas realizadas internacionalmente: conceitos e contextos

A ambiguidade na definição e na classificação de abuso sexual de menores é objecto de questionamentos a nível epistemológico por parte de um conjunto importante de pesquisadores. Neste sentido, Amazarray e Koller (1998), descrevem as diferenças, nalguns casos muito pronunciadas, entre vários autores, sobre abuso sexual de menores.

É assim que autores como Cristoffeli et al. (1992, citado por Amazarray e Koller, 1998)[5] incluem no conceito de abuso um amplo conjunto de manifestações que vão desde negligência à violência física. Outros como Watson (1994, citado por Amazarray e Koller, 1998)[6] descrevem “abuso sexual como qualquer actividade ou interacção onde a intenção é estimular e/ou controlar a sexualidade da criança”.

Um outro estudioso (Knutson, 1995, citado por Amazarray e Koller, 1998)[7] refere-se aos problemas criados pela indefinição e amplitude do abuso sexual, afirmando que este “não se deve limitar à actividade ou ao acto em si, mas deve envolver também as interacções que até podem ser verbais (…) e que a diferença de idade não deve ser a principal exigência para o diagnóstico, visto que é a relação de poder estabelecida entre abusador e vítima que caracteriza essa interacção” (Amazarray, 1998: 3). Neste texto são ainda feitas referências à equiparação de abuso sexual com incesto e o estupro com violação sexual no contexto extra familiar.

Esta multiplicidade de categorias e dimensões na caracterização de violência/abuso sexual impede o registo rigoroso de dados, incluindo a clarificação entre contextos de produção da violência e definição de perfis das vítimas e dos agressores. Esta situação também comprovada na nossa pesquisa, como veremos nos artigos que publicaremos em outras edições deste boletim, não permite o reconhecimento integrado do problema, conduzindo à sua desvalorização e invisibilidade.

Referindo-se à violência sexual, Amazarray e Koller adiantam que “o silêncio perdoa o agressor e reforça o seu poder sobre a vítima. O agressor não percebe a vítima como uma pessoa mas como um objecto destituído de sentimentos e direitos” (Amazarray, 1998: 1). Isto também se constata em Moçambique, onde a educação pela obediência e o não questionamento de rituais violentos promovem o silêncio das vítimas, principalmente quando a violação sexual é cometida no seio da família, dessa mesma família que as deve proteger e de quem dependem. Nesta ordem de ideias, as mesmas autoras, referindo-se a diferentes realidades no mundo afirmam, citando Kaplan e Sadok (1990)[8], que a vergonha, a culpa e a tolerância da vítima combinadas com a “relutância de alguns profissionais em reconhecer e relatar o abuso sexual, a insistência dos tribunais em regras estritas de evidência e o medo por parte das famílias, da dissolução das mesmas” desincentivam a denúncia (Amazarray, 1998: 5).

São terríveis as consequências da violência sexual para as crianças, exigindo a formação de equipas multidisciplinares para, deste modo, evitar o agravamento dos danos psicológicos cometidos pelos agentes da justiça e de saúde. Estes últimos, tal como ficou constatado na nossa pesquisa em Maputo, ao não denunciarem a violação sexual, estão na realidade a contribuir não só para a perpetuação da mesma mas, sobretudo, para criar na vítima um sentimento de culpa e legitimação da agressão. Por outro lado, a inexistência de sinais exteriores de violação consumada e de trauma não significa que a criança não tenha sofrido fortes danos. Retomaremos esta questão nos artigos seguintes, através da análise das entrevistas, em que fica claro a forma displicente e negligente com que alguns observam e tratam a violação sexual de crianças na cidade de Maputo.

Um estudo sobre abuso sexual de crianças sob a forma de incesto, mostra que mais de 95% dos violadores são homens, tendo sido identificados pela autora um conjunto de efeitos negativos entre os quais se destacam: “transtorno de stress pós-traumático, desiquilíbrio relacional contínuo e elevado risco de incesto inter geracional” (Nunan, 1998: 20). Para outros autores, principalmente no contexto intra familiar, o abuso (entendido no sentido de violência sexual contra crianças) é por vezes de muito difícil comprovação, prolongado no tempo e constituindo um segredo familiar, o que leva, na maior parte dos casos, à sua banalização (Araújo, 2002). O rompimento com o pacto do silêncio familiar e a denúncia obrigaria a desconstruir os papéis de género e a pôr em causa o dominador, aquele a quem foi conferido o poder de impor regras, de definir o bem e o mal. Esta é a principal causa da ocultação da violência sexual exercida contra menores no seio da família. Neste trabalho é indicado que numa pesquisa realizada por Saffioti em São Paulo, Brasil, em 1997, “71,5% dos agressores eram pais biológicos e 11,1%, padrastos. Portanto, pai e padrasto foram responsáveis por 82,6% do total de abusos sexuais (Saffioti, 1997: 183).[9]

Um trabalho sobre famílias onde foi perpetrada violência sexual sobre crianças (Penso et al., 2002), analisa o abuso sexual de crianças como uma forma de violência caracterizada pela existência de uma relação sexual determinada por um poder desigual:

“Compreendendo um modo particular de significação para cada um dos envolvidos (…). A vítima enquanto criança/adolescente, assume uma posição submissa e é incapaz de compreender totalmente a natureza desta relação no contexto de tantas outras que mantém com os seus progenitores e/ou cuidadores. Por sua vez o autor do abuso utiliza-se da confiança e dependência do dominado a fim de apoderar-se da sua sexualidade” (2009: 143).

Araújo (2002), recorrendo a Saffioti[10], afirma que a dominação masculina é estruturante de uma ordem social que submete funções e papéis a um modelo que não é só androcêntrico mas também adultocêntrico, combinando a submissão de género com a submissão geracional. É neste sentido que refere que “a relação de submissão de uma mulher ao poder masculino violento está conectada em alguma medida, à submissão ao poder masculino violento genérico de um pai sobre sua filha, de seu próprio pai sobre ela mesma e do genitor de sua filha sobre a sua própria criança” (2002: 150). Isto significa que, ao silenciar a agressão do seu parceiro face à sua filha, a mulher cumpre um mandato inscrito no modelo patriarcal.

No caso de Moçambique quando alguns pesquisadores, dirigentes ou fazedores de opinião pública apelam à interacção pacífica entre cultura, tradição e direitos humanos, recorrendo à especificidade de uma identidade local para despenalizar, ocultar, ou conciliar interesses culturais com medidas legais (não tendo em conta que a violação de direitos se inscreve num modelo global androcrático), estão na realidade a estimular que as crianças deste país permaneçam como não sujeitos de direitos.

Não se pode olvidar, principalmente no contexto familiar, que a violação sexual contra crianças deve ser vista no quadro da mesma tradição cultural que naturaliza a dominação do pai, do tio, do padrasto ou do irmão, numa situação em que a dependência, a culpa e o afecto face ao adulto, interage com um normativo configurador da violência de género.

Tal como tem sido constatado também na literatura elaborada sobre diferentes realidades sociais, a questão da ambiguidade da definição de abuso sexual tem conduzido à subvalorização da violência sexual e consequentemente apenas ao seu tratamento médico e legal. Neste sentido, Márcia Amendola enuncia que:

“a violência sexual contra crianças, também designada: abuso sexual, agressão sexual, vitimização sexual, maus tratos, sevícia sexual, crime sexual e outros tantos termos utilizados, indiscriminadamente, na literatura, como sinónimos, reflecte não apenas uma questão de terminologia, mas principalmente uma questão epistemológica, segundo a qual a complexidade e a diversidade das manifestações da violência sexual, seja tratado conforme opiniões e ideologias individuais e/ou compartilhadas pela cultura na qual o individuo está inserido” (Amendola, 2009: 200).

Isto significa, também, que a caracterização de violência sexual deve ter em conta os contextos e os valores que a rodeiam, de modo a impedir que questões de ordem moralizadora intervenham na sua categorização. É o caso, por exemplo, identificado na nossa pesquisa, em que alguns dos entrevistados consideram como agressores sexuais rapazinhos de 5/7 anos que interagem através do corpo com meninas da mesma idade. A inclusão de uma perspectiva preconceituosa naquilo que constitui a aprendizagem infantil sobre o corpo do outro, não apenas inclui uma dimensão violenta no que é apenas um “jogo” infantil, como pode gerar traumas, conduzindo a uma percepção das diferenças sexuais e da sexualidade como algo pecaminoso e secreto, não contribuindo, na passagem da criança para a idade adulta, para o reconhecimento de direitos.

Uma pesquisa realizada na Guiné Bissau, analisando a exploração e o abuso sexual de menores, inventaria criticamente as definições que são conferidas ao abuso sexual, destacando que a maioria dos autores, incluindo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), estabelece como critério para abuso sexual o contacto ou acto sexual entre criança e adulto, num contexto do uso da força e poder. Colocada assim, a definição de abuso aparece como sinónimo de violação sexual, alienando outras formas de violência, nomeadamente as que estão assentes na desigualdade de género (Có et al., 2006).

O estudo refere que as principais práticas de violência e violação sexual na África Ocidental é a mutilação genital feminina (veja mais adiante neste boletim o destaque sobre este assunto), os casamentos forçados, a gravidez precoce e o aborto de alto risco (estimando-se que na África Subsariana 40% dos abortos de risco ocorrem entre adolescentes). Em relação aos casamentos prematuros o estudo refere que “se projecta que mais de 100 milhões de raparigas serão casadas nos próximos 10 anos sem ainda completarem os 18 anos (…) e que actualmente na África Ocidental cerca de 44% de mulheres casadas têm idade inferior a 15 anos” (Có et al., 2006: 20), numa clara violação da legislação. Por outro lado, e referindo-se à violência provocada por conflitos armados na África Subsariana, os autores afirmam:

“Os raptos para fins de guerra e violação sexual estão associados ao aumento do VIH/SIDA e infecções sexualmente transmissíveis. Por exemplo, 28.000 a 30.000 crianças com menos de 18 anos (onde a metade tem entre 10 a 14 anos) são abandonadas à prostituição na África do Sul. No Ruanda, estima-se que, durante o genocídio, meio milhão de raparigas e mulheres foram raptadas, dentre quais 67% ficaram infectadas pelo VIH/SIDA. De todas as crianças seropositivas do mundo, 80% são órfãs (de pais mortos devido ao VIH/SIDA) e vivem na África Subsahariana. Em 2003, dos 143 milhões de crianças órfãs que vivem na Ásia, Africa e Caraíbas, estima-se que 15 milhões terão perdido os pais por causa da SIDA, 12 milhões destas crianças pertencem a África Subsahariana” (Có et al., 2006: 20).

Tal como noutros países, também na Guiné Bissau a situação de violação sexual intra familiar se mantém em silêncio, ao mesmo tempo que as instâncias de administração de justiça se mostram incapazes de fazer cumprir as leis. Aliás, esta ocultação da agressão está de acordo com a pressão que a comunidade exerce sobre as vítimas, ignorando o seu sofrimento, contribuindo, desde modo, para estimular a continuação da violação por parte do mesmo ou de outros agressores sobre novas vítimas, que são, para além das que se encontram no contexto familiar, também as que se dedicam à venda de produtos informais e as que vivem na rua. É neste quadro em que as crianças são percebidas como não sujeitos de direitos, que os casamentos forçados entre crianças e adultos são culturalmente naturalizados e socialmente aceites. Há contudo, como se constata também no nosso país, já sinais de resistência das raparigas que recusam esta forma indigna de união, denunciando-a e alertando as organizações da sociedade civil ou as autoridades policiais (Osório e Silva, 2008).

Conclusões

Como se pode constatar, a violência sexual de menores na dimensão violação sexual é objecto de estudo de um conjunto profuso de pesquisadores, principalmente em áreas específicas como a psicologia e a antropologia, sendo que poucos trabalhos privilegiam uma abordagem multidisciplinar.

Tendo em conta o tema da pesquisa, a violação sexual de menores de 12 anos, evidenciamos na literatura analisada três questões:

  1. A primeira diz respeito à ambiguidade conceptual, principalmente entre abuso sexual, violência sexual e violação sexual. Tomados como sinónimos ou como categorias e dimensões segundo o arbítrio dos investigadores (por exemplo, a violência sexual tanto é considerada uma dimensão da categoria abuso, como seu sinónimo) e das próprias agências internacionais que trabalham com direitos das crianças, é extremamente complicado identificar-se com rigor as particularidades que cada uma das manifestações de violência sexual assume, definir os contextos da sua produção e os perfis dos agressores e das vítimas. Tendo em conta a dispersão dos dados, as abordagens diferenciadas sobre os conceitos e a sua aplicação na análise da realidade, a informação que é fornecida deve ser relativizada.
  2. Uma segunda questão tem a ver com a ausência, em muitos trabalhos, de uma abordagem da violação sexual no contexto das relações de género. É frequente indicar-se a força e o poder como estruturante da violência sexual, mas é mais raro inscrevê-la numa ordem social assente nas hierarquias de género. Isto tem como resultado não apenas a transmissão de uma visão reducionista do problema, mas a ocultação, traduzida muitas vezes em cumplicidade com modelos culturais que sobrevivem através da negação dos direitos aos seres humanos do sexo feminino. A fragilidade ou vulnerabilidade das crianças e adolescentes face à violência sexual, principalmente a que é realizada no seio da família, se tem a ver e comporta a força física, está ainda mais relacionada com a construção naturalizada da dominação masculina. Parece-nos que esta é uma abordagem necessária e imprescindível quando se pretende analisar a violência que atravessa, percorre e explica as relações sociais entre violador e vítima.
  3. Finalmente, a terceira questão tem a ver com a construção das identidades feminina e masculina. Se o corpo é o núcleo central sobre o qual se vão inscrevendo, ao longo do ciclo de vida, valores, comportamentos e habilidades, as formas e o modo como os mecanismos de identificação configuram mulheres e homens à ordem social e cultural dominante, torna-se necessário observar a violação sexual intra familiar de um ponto de vista da construção da sexualidade. Como tantas vezes referimos, a aprendizagem da sexualidade é realizada através dos silêncios, das pequenas e grandes interdições, da formatação das expectativas em função do “outro”. Por estes caminhos se prepara a criança como corpo ” útil” e se prescreve um normativo que silencia a violência sexual. Ora, se tomarmos em conta que é no contexto familiar que se inicia e se “dá como verdadeira” a aprendizagem sobre a “reserva” do corpo, ao mesmo tempo que se ensina a legitimar o poder masculino, entende-se como a ausência de denúncia e o pacto de silêncio entre os membros da família e comunidade, constrangem a visibilidade e a penalização deste crime. Por outro lado, a ambiguidade e/ou a valorização das tradições (dinâmicas e em constante mudança) continuam a impedir que, de uma vez por todas, se considere o “casamento” prematuro como violência/violação sexual, que deve ser objecto de políticas e estratégias que impeçam a sua continuidade.

Leia a segunda parte deste artigo

 

Referências bibliográficas

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Amazarray, M.; Koller, S. (1998), “Alguns Aspectos Observados no Desenvolvimento de Crianças Vítimas de Abuso Sexual“. In: Psicologia Reflexão e Crítica, vol. 11, nº 3.

Amendola, M. (2009), “Analisando e (des)construindo conceitos: pensando as falsas denúncias de abuso sexual“. In: Estudos e Pesquisas em Psicologia, Ano 9, nº 1. pp 199-218

Araújo, M. F. (2002), “Violência e Abuso Sexual na Família“. In: Psicologia em Estudo, v. 7, nº 2. pp.3-11

Bagnol, B. (2004), Avaliação da Área Temática. Violência e abuso sexual de crianças. Maputo: Save The Children Noruega. [Leia mais sobre o trabalho da Save the Children Noruega na área temática de violência e abuso sexual da criança clicando aqui]

Có J. et al. (2006), Abuso e a Exploração Sexual de Menores na Guiné-Bissau. Guiné Bissau: INEP, UNICEF.

Collet, A. (2010), Pesquisa de Crenças e Atitudes em Relação à Violência Sexual Contra a Mulher e a Rapariga na Província de Tete. Maputo.

FDC (2008), Violência Contra Menores em Moçambique. Maputo

Ministério da Educação e Cultura, Direcção de Programas Especiais (2008), Relatório da auscultação através das Unidades de Género, Conselhos de Escolas e Jovens raparigas sobre que mecanismos a adoptar para a prevenção, combate, denúncia e encaminhamento de casos de assédio e todo o tipo de abuso, incluindo o abuso sexual na escola. Maputo.

MISA (2008), Violência, exploração e abuso sexual de crianças. Análise da cobertura jornalística e recomendações para os media, Maputo.

Nhantumbo, S. et al. (2010), Casamentos prematuros em Moçambique, contextos, tendências e realidades. Maputo.

Nunan, A. (1998), Abuso sexual de crianças. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Osório, C.; Silva, T. (2008), Buscando sentidos, Género e sexualidade entre jovens estudantes do ensino secundário, Moçambique. Maputo: WLSA.

Osório, C.; Silva, T. (2009), Género e governação local, estudo de caso na província de Manica, distritos de Tambara e Machaze. Maputo: WLSA.

Penso, M. et al. (2009), Abuso sexual intrafamiliar na perspectiva das relações conjugais e familiares.

Rede Criança (2009), Relatório da Sociedade Civil Sobre a Implementação da Convenção dos Direitos da Criança, Maputo.

 

Notas:

[1] Dirigida por Conceição Osório e que teve como assistente de pesquisa Edson Mussa.

[2] Puxa-puxa, como é localmente designado, refere-se ao alongamento dos pequenos lábios, ritual praticado normalmente entre os 8 e os 15 anos, e muitas vezes repetido depois do parto.

[3] Tradução realizada por Angela Collet de Krug, E.G. et al. (2002), World Report on Violence and Health, Chapter 6. WHO.

[4] A mesma situação acontece em Moçambique, nos Gabinetes de Atendimento de Mulheres e Crianças Vítimas de Violência, existentes nas esquadras de polícia, onde tem sucedido que as vítimas são ridicularizadas e intimidadas.

[5] Christoffel, K. et al. (1992), Standard definition for childhood injury research. Washington, DC: NICHO.

[6] Watson, K. (1994), Substitute care providers: Helping abused and neglected children. Washington, DC: National Center on Child Abuse and Neglect.

[7] Knutson J.F. (1995). Psychological characteristics of maltreated children: Putative risk factors and consequences. In: Annual Review of Psychology, 46. pp. 401-431

[8] Kaplan, H I.; Sadock, B.J. (1990), Compêndio de Psiquiatria. Porto Alegre: Artes Médicas. (2ª edição)

[9] Citada por Araújo, 2002: Saffioti, H. (1997), No Fio da Navalha: Violência Contra Crianças e Adolescentes no Brasil Atual. In: Madeira F. (org), Quem Mandou Nascer Mulher?, São Paulo: Editora Rosa dos Tempos. pp 134-211

[10] Saffioti, H. (2001), Contribuições Feministas para o estudo da violência de género. In: Cadernos Pagu (16). pp. 115-136

 

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