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Dinâmicas familiares e percepções de pobreza e género em Moçambique

Ana Loforte

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 22, Fevereiro de 2008

Introdução

Este artigo parte de uma perspectiva que pretende lançar um olhar sobre as percepções da pobreza à luz das estruturas de género, tendo como base uma pesquisa desenvolvida pelo DAA1. As entrevistas realizadas tiveram como alvo alguns grupos focais de mulheres e homens, agregados familiares chefiados por crianças órfãs ou que albergassem órfãos, chefiados por homens, por mulheres e ainda agregados de imigrantes recentes, salvaguardando sempre o equilíbrio do género – processo intencional para integrar diferentes níveis da estratificação.

Dando primazia ao facto de que as relações sociais têm um efeito poderoso sobre a acção humana, teve-se como unidade de análise o agregado familiar em toda a sua dinâmica e enquanto espaço de tomada de decisão no contexto destas mesmas relações. Teve-se igualmente como pano de fundo a ideia de que a forma como a família se constitui como valor tem por fundamento uma concepção do mundo relacional e hierárquica.

Utilizou-se a estratégia de inventariar as redes de parentesco e vizinhança dos agregados, tendo em atenção o facto de essas redes serem constituintes de formas de organização social nos lugares estudados. Este quadro diferenciado de informantes complexificou a análise e possibilitou o acesso a um maior número de informação que permite uma construção mais ampla do contexto onde os informantes estão inseridos.

Olhamos para as famílias no seio das comunidades e das suas redes, no interior das quais o conceito de pobreza ganha usos e itinerários diversos. À luz de Geertz (1998), o acto de classificar o mundo, ao construir, por exemplo, um conceito como o de pobreza – passa a ser um acto de traficar com as formas simbólicas disponíveis nas comunidades. Pensamos que, para explicar os usos, as idas e vindas desse tráfico, é preciso analisar as comunidades no interior das quais as formas simbólicas estão disponíveis. Esta análise, no caso proposto por Geertz, não significa necessariamente descrever a sua estrutura social, mas estar atento às normas que as organizam e que as põem em contacto com outras.

Valorizou-se ainda a inclusão da experiência das mulheres para revelar outras dimensões do real das quais normalmente são excluídas, pois, sendo informantes relativamente marginais, reflectem mais sobre a sociedade em que vivem, sobre as suas regras sociais e os seus padrões, exactamente porque muitas vezes os questionam. Nesta ordem de ideias, procurou-se desenvolver uma abordagem que buscasse entender como homens e mulheres produzem e se apropriam de modelos explicativos para as categorias de pobreza em função da sua experiência social concreta.

Do ponto de vista teórico, a abordagem é centrada no facto de que os indivíduos agem e respondem a partir das suas percepções emic2 sobre a sua posição socioeconómica, e de que das assimetrias sociais são dimensões relevantes da estrutura e acção (Bourdieu, 1990).

A perspectiva a partir da qual foram analisados os dados recolhidos teve como substrato a concepção de que as relações entre homens e mulheres são relações de poder, socialmente construídas, constantemente negociadas, resultando em partilhas, desigualdades e diferenças. Na incorporação da categoria género, privilegiou-se a dimensão social e simbólica da diferença para dar abertura à desconstrução da polaridade masculino/feminino e pluralizar estas noções (Butler, 2001; Scott, 1988).

Algumas iniciativas de combate à pobreza em Moçambique

Os Planos de Acção de Resolução da Pobreza Absoluta (PARPA)

A história mais recente das iniciativas governamentais no combate à pobreza remonta aos inícios de 1980, aquando do programa “Dimensões Sociais do Ajustamento Estrutural”. Todavia, o primeiro inquérito nacional sobre a pobreza e bem-estar, designado por IAF, teve lugar em 1996-97 e o seu enfoque principal foi a identificação da escassez de recursos dos agregados familiares, num período de grande mobilidade populacional em que uma parte significativa dos deslocados e refugiados retornavam aos seus locais de origem finda a guerra, tendo verificado que aproximadamente 70% da população moçambicana se encontrava abaixo da linha da pobreza. Um segundo inquérito da mesma natureza (IAF 2002-2003) demonstrou que a pobreza nacional diminuiu para 54%.

Na verdade, todo o processo de preparação do PARPA I surge na sequência do IAF, no âmbito de uma estratégia global de combate à pobreza. O PARPA I constituiu um instrumento de planificação de médio prazo (isto é, quinquenal), com carácter nacional e multi-sectorial dando papel de relevo aos sectores sociais. Ele emerge como complemento do Programa do Governo e de outros instrumentos a curto prazo, mas igualmente como indicador da política económica externa de Moçambique, como veículo de cooperação e diálogo visando a mobilização de recursos junto dos parceiros internacionais e a negociação para alívio da dívida, no contexto de estratégias para combate à pobreza.

No entanto, apesar da feminização crescente da pobreza derivada das desigualdades sociais, o objectivo da igualdade de género ainda não se encontrava devidamente retratado no PARPA; este documento não reflectia as disparidades de género e poder nas sociedades moçambicanas e não continha intervenções concretas que visassem reforçar os direitos das mulheres. Mas foram feitos esforços para superar estas lacunas e algumas organizações femininas, como o Fórum Mulher, o Grupo de Coordenação de Género e o Ministério da Mulher e Acção Social (MMAS) procuraram influenciar na elaboração de indicadores para incorporar aspectos de género.

Na concepção do PARPA II (2006-09) teve-se em vista alcançar o objectivo de diminuir a incidência da pobreza de 54% em 2003 para 45% em 2009. Tal como o anterior, este Plano estabelece como áreas prioritárias o desenvolvimento do capital humano na educação e na saúde, a melhoria da governação, do desenvolvimento de infra-estruturas básicas e da agricultura, do desenvolvimento rural e da melhoria na gestão macroeconómica e financeira. Assente em três pilares (governação, capital humano e desenvolvimento económico) ele centra a sua atenção no incremento do nível de vida das populações mais carenciadas e desfavorecidas, vivendo em pobreza absoluta.

O PARPA II já apresenta a pobreza como sendo a (im)possibilidade por incapacidade ou por falta de oportunidade, de indivíduos, famílias e comunidades terem acesso a condições mínimas, segundo as normas da sociedade. Esta nova definição indica uma percepção diferente, longe da visão do pobre como passivo na acção de luta contra a pobreza, para uma redefinição do pobre como agente e sujeito do seu próprio desenvolvimento, mas que enfrenta uma falta de oportunidades3. Figuram igualmente definições alternativas e mais latas cobrindo aspectos não apenas relacionados com a carência de rendimentos mas também com a falta de acesso a recursos básicos como a educação, a saúde, a água e o saneamento, a energia, etc.

Percepções sobre a pobreza e suas dimensões

Nesta parte pretende-se explorar as percepções dos indivíduos e os seus discursos face à pobreza. Foi possível constatar que essas percepções são várias e que as ideias são sobretudo baseadas nas suas próprias experiências de pobreza e na forma como esta é enfrentada no quotidiano. Assim também os discursos sobre a mesma são, consequentemente, diferentes de indivíduo para indivíduo.

As respostas são díspares e apontam para uma distinção entre a pobreza que afecta a comunidade onde se inserem e a que afecta a família ou o indivíduo. Para a primeira, são realçados vários factores, dos quais, prioritariamente, a falta de serviços e infra-estruturas básicas, que são externos e estruturais mas que atingem os indivíduos nela inseridos. Para a segunda são salientados factores internos que têm a ver com a percepção de pobreza de cada família/indivíduo, em particular.

Há ainda a registar o facto de essas mesmas percepções apresentarem muitas facetas: são genderizadas e têm uma dimensão local e regional o que torna complexa a ideia de que existe uma concepção colectiva de pobreza na qual nos poderíamos basear.

No tocante aos indivíduos, a associação ao facto de ser pobre é visto como resultando de, pelo menos, quatro situações: (i) falta de dinheiro, de fontes de rendimento e de bens essenciais; (ii) falta de capital social; (iii) saúde precária e fraca oportunidade na educação; (iv) falta de bens de consumo e deficiente acesso aos recursos produtivos. Iremos analisar apenas algumas destas percepções, mas é importante assinalar que esta categorização é simultaneamente marcada pelo mapeamento de um conjunto de bens materiais, financeiros, políticos e de serviços que, de acordo com o grau da facilidade ou dificuldade no seu acesso, determina também, na óptica dos entrevistados, quem deve ser entendido como pertencendo a uma classe rica ou pobre. O discurso sobre a pobreza é construído em torno de um binómio rico/pobre e vice-versa.

Muitas destas características da pobreza são vistas simultaneamente como causa e consequência, sublinhando o seu carácter dinâmico, complexo e inter-relacionado.

Falta de dinheiro e de fontes de rendimento e meios de vida

Na óptica dos entrevistados que constituíram alguns grupos focais de homens, a ausência de meios seguros e estáveis para se sustentar, isto é, não possuir um terreno para produzir, não ter emprego e, consequentemente, não ter dinheiro para desenvolver outra actividade, emerge frequentemente como indicador de pobreza e enfatiza a natureza cíclica e sazonal da pobreza. Com efeito, apesar do emprego assalariado não ser a solução única para a obtenção de meios de sobrevivência no meio rural, para os entrevistados a precariedade, a ausência e a escassez de um mercado de trabalho no local torna-os pobres. Por outro lado, a própria instabilidade da produção agrícola em função de secas e cheias, oferece poucas possibilidades de acumulação.

Entre os jovens abordados nos grupos focais, ser pobre, de uma forma geral, é equivalente a não possuir uma fonte de rendimento (emprego formal ou informal). Especificamente, enquanto jovens com sonhos, espírito empreendedor e força característica da juventude, pobreza é sinónimo de fraca ou total ausência de oportunidades para aplicar as capacidades físicas e intelectuais de que dispõem.

As concepções de pobreza por parte de homens e mulheres convergem no que tange, por exemplo, à associação desta com a falta de recursos financeiros, mas foi possível identificar alguns padrões contrastantes nas percepções/ideias sobre pobreza. Para as mulheres separadas ou divorciadas, não obstante o trabalho árduo por si desenvolvido na agricultura, a dificuldade em obter receitas ou o controlo das terras a pobreza está directamente associada à falta da presença masculina, particularmente pela possibilidade dos homens poderem ter acesso a um trabalho remunerado e a trazer dinheiro para casa.

A função de provedor continua a ser associada ao papel da pessoa tida como a de referência na família. E, como esse papel é de atribuição masculina, a função de provedor continua também a expressar a figura masculina. Essa associação contribui para que presença da mulher-cônjuge, que obtém receitas, não tenha visibilidade. Por outro lado, a presença ainda pronunciada de parte do conjunto das mulheres na categoria de dependentes económicas conduz, em grande medida, à permanência da associação entre a função de provisão, o elemento de referência na família e a figura masculina. Para além disso, a falta de rendimentos agrícolas deriva também da impossibilidade das mulheres terem o controlo de recursos, como a terra, uma vez que elas acedem à mesma por via masculina e têm pouco poder decisão sobre ela. Acredita-se que é infrutífero atribuir terras a quem vai pertencer a outro grupo e os direitos de acesso a ela dependem da duração da união matrimonial.

Para 30% das informantes entrevistadas nos grupos focais de mulheres e em quatro agregados familiares em Gaza que têm chefias femininas, a verdadeira pobreza significa ser viúva. Sublinham assim a dependência em relação ao provedor, não tendo elas capacidade de prover os seus filhos com as necessidades básicas e meios de sobrevivência.

Mulheres chefes de agregado consideram-se pobres porque vivem sozinhas sem marido. De acordo com as suas declarações, “uma mulher casada conta com a ajuda do seu marido na busca de meios alternativos nos tempos de fome, enquanto que uma mulher solteira e viúva faz tudo sozinha, o que lhe (a) coloca em desvantagem”.

Por detrás desta concepção, está a ideia de que a família monoparental materna não é nem estável nem legítima, como aquela em que os dois cônjuges estão presentes, o que reforça o poder masculino uma vez que o homem é o chefe do agregado e o provedor.

As concepções de pobreza, em toda a sua dinâmica, interagem com construções locais e, nesse processo, as percepções e os comportamentos sociais masculinos e femininos também se revelam. Apesar de algumas transformações nas relações familiares, esta situação indicia a manutenção das características hierárquicas nas famílias e a coexistência de formas assimétricas de interacção nas quais as relações de género se constituem e se recortam.

A falta de bens de consumo essenciais

O camponês que trabalha durante todo o ano e não produz alimentos (ou seja, o que no fim da campanha não consegue colher quase nada por falta de chuva) ou aquele cujo produto é comprado a preços muito baixos pelos comerciantes locais, é tido como pobre. Na verdade, acabam ambos por não ter o que comer, carecendo de ajuda. Ligam assim a pobreza à necessidade de independência social. Um pobre é aquele que necessita da ajuda de outros, sendo totalmente incapaz de retornar essa mesma ajuda. O pobre que não tem bens de consumo não pode reproduzir-se socialmente, tornando-se insignificante, também, em termos sociais.

A falta de determinados bens como motorizadas, bicicletas, uma casa coberta de chapas de zinco, vestuário e calçado, representam, na óptica dos homens (Distritos de Pebane e Chokwé), um elemento fundamental na definição de pobreza. Em Pebane, um informante estabeleceu uma comparação entre os pesquisadores e ele próprio afirmando severamente: “Vocês trazem sapatos e nós estamos descalços e ainda perguntam o que é ser pobre. Será que não conseguem ver a diferença? Ou vêm brincar connosco?”

Uma mulher sem capulanas, esteira e casa mobilada é citada como sendo pobre. A capulana, neste contexto social, é um produto de prestígio e o homem demonstra o seu afecto e apreço pela esposa oferecendo-lhe capulanas com alguma regularidade mesmo que ela não as use frequentemente. Nesta ordem de ideias, a capulana aparece referenciada pelas mulheres como um bem importante de diferenciação social, uma vez que, sendo um bem de prestígio, a sua obtenção com alguma regularidade pressupõe um certo desanuviamento em termos financeiros. Ou seja, em primeiro lugar, perante as dificuldades com que se debatem para a sua sustentabilidade, o mais importante é canalizar os parcos recursos para as necessidades básicas e só depois, e muito remotamente, adquirir aqueles bens. Os agregados que o fazem sem muitos constrangimentos aparecem como pertencendo a uma categoria social elevada.

A falta de capital social

A pobreza tem uma dimensão social e a deterioração das relações a nível das famílias, que se consubstancia na falta do marido, é considerada como um sinal de pobreza, como já referimos. Na percepção de pobreza que emerge das entrevistas realizadas salienta-se o isolamento, o abandono motivado, por um lado, pelas redes de solidariedade fracas a nível comunitário e de vizinhança, mas por outro, pela dificuldade de usufruir de maior ajuda por parte dos serviços sociais.

A falta de solidariedade, de confiança, de valores morais e cívicos em degradação foram também aspectos sublinhados. Eles são percebidos como estando a minar a capacidade para criar redes, associações e outras formas de colaboração que possibilitariam a luta e a defesa de interesses comuns como a disputa por preços mais justos para os seus produtos.

A solidariedade familiar expressa-se principalmente através de ajudas de subsistência, ou seja, apoios em relação aos serviços que possibilitam a preservação de uma autonomia mínima no modo de vida e em iniciativas individuais. As informações disponíveis e as inferências possíveis permitem identificar que os apoios parecem ser constitutivos da identidade feminina e são praticados visando garantir a proximidade entre gerações, o que indicia uma tendência sociologicamente analisada de uma relação/vínculo privilegiado entre mães-avós e filhas-mães.

Na vida quotidiana dos que vivem com poucos recursos, no plano do núcleo familiar, as redes constituem sectores importantes de sobrevivência e é nelas que os alimentos e favores são obtidos e trocados, criando-se esferas cruciais de manutenção das famílias. Mas as redes são baseadas na reciprocidade, algo que os pobres nem sempre são capazes de oferecer.

A nível das famílias, e de acordo com os informantes, a degradação dos valores leva ao abandono das crianças pelos seus progenitores. Assim, mulheres solteiras e casadas com filhos abandonados pelos seus maridos integram também a categoria dos que são considerados pobres. Crianças criadas em famílias monoparentais maternas sofrem o impacto da ausência do capital social que deveria estar disponível nas relações familiares e sociais em função da ausência física ou emocional dos pais. Assim, mães solteiras e mulheres chefes de agregado consideram-se pobres porque vivem sós, sem assistência social e financeira.

Para as comunidades, as famílias monoparentais são percebidas como desviantes, pobres, porque reveladoras de processos de inadaptação, com custos sociais significativos. A ruptura conjugal representa um risco de exclusão face aos comportamentos tidos como normais, ou seja, é concebida como um comportamento familiar anómalo perante os modelos familiares vigentes.

Foi interessante verificar a situação de pobreza nas famílias recompostas. Para as mulheres com filhos abandonados pelos maridos, uma segunda união é desejada pois permanece a ideia de que é melhor a criança ser educada por ambos os pais. As famílias recompostas poderiam constituir uma alternativa, isto é, um cenário possível de saída numa situação de debilidade económica e instabilidade social. Mas estas implicam sempre um conjunto de transições familiares que emergem após uma separação ou divórcio, pressupondo a presença de crianças oriundas de uma relação anterior e um padrasto ou madrasta. A recomposição familiar poderia implicar o suporte económico fazendo face ao empobrecimento após a separação. Mas a nova união não significa necessariamente que o novo parceiro vai assumir a responsabilidade com o quotidiano de criação das crianças e o seu sustento financeiro. A pensão de alimentos deve ser dada pelos pais biológicos e é tida como um compromisso particular e do interesse estrito daqueles. Os relatos femininos expressam o receio de que os filhos do primeiro casamento sejam rejeitados pelo novo companheiro, o que pesa no momento de decidir sobre um novo relacionamento. Os homens tendem a atribuir importância aos laços de sangue, estabelecendo diferenças entre os filhos biológicos e os que o não são. Na verdade, o relacionamento pai-filho é um vínculo construído ao longo da convivência dos homens com a sua prole contando com a mediação da mãe. O laço de afinidade estabelecido pelo novo casamento não define um tipo de comprometimento dos homens com filhos que não são dele e que estão adstritos ao contexto da nova aliança conjugal. É um vínculo circunstancial em que as lealdades são estabelecidas pelo tipo de relação de afecto desenvolvido entre os filhos e o marido da mãe. O processo de recomposição familiar pode ser afectado pelas tensões e conflitos presentes no contexto da conjugalidade.

As informantes de sexo feminino referem ainda que mulheres com maridos alcoólatras enfrentam as mesmas dificuldades que as viúvas, apelidando-se de “viúvas de maridos vivos” (que retiram o pouco do rendimento familiar para o consumo do álcool). Por exemplo, uma mulher portadora de deficiência e com um marido alcoólatra e com seis filhos por cuidar, e lidando com situações de abuso, considerou-se pobre por ser incapaz de fornecer aos seus um ambiente seguro, confiante e sustentável que nutre o capital social. Ela afirmou: “o meu marido não ajuda em nada, pelo contrário, retira os poucos rendimentos da família, que são os excedentes de produção, para a aquisição de bebidas alcoólicas de fabrico caseiro”.

Uma das consequências óbvias deste ambiente familiar, segundo a entrevistada, é o fraco desempenho escolar dos seus filhos. As crianças recusam-se a ir à escola e a fazer os deveres de casa. A estabilidade familiar, neste caso, é ameaçada pois se torna difícil ter dinheiro disponível para a aquisição de alimentos. Pelo não fornecimento do capital social, os parentes inadvertidamente interferem na habilidade das crianças atingirem o seu potencial educacional, aumentando a probabilidade de enfrentar dificuldades económicas ao longo da vida.

Uma das entrevistadas afirmou que se conforma com as acções do seu parceiro e não denuncia os seus abusos porque ele é o chefe da família. Escolhas sobre manter ou criar ruptura na relação estão ligadas a ideologias acerca do género e da família. Os esforços desenvolvidos pela família para a manter unida ignoram ou tornam obscuras as desigualdades estruturais. Por outro lado, vítimas da situação traumática, como esta mulher sujeita a abusos, normalmente desenvolvem mecanismos de defesa como estratégias de sobrevivência. Os mecanismos accionados são a dissociação do pensamento, a negação de sentimentos, o que exerce um efeito mutilador sobre as capacidades cognitivas e sobre a capacidade de acção efectiva (Banchs, 1995, citado por Narvaz e Koller, 2006). A vergonha de que deveria ser portador aquele que a agrediu volta-se contra a mulher e silencia-a, fazendo com que ela se torne parte da rede que sustenta a dominação (Bourdieu, 1998).

A mulher estéril é também pobre pois a maternidade é o eixo sob/através do o qual as mulheres da comunidade organizam as suas vidas, num contexto de sexualidade inibida e orientada para a procriação. A condição de mãe determina uma mudança significativa nas relações das mulheres com a sua família e com a sua rede de relações mais ampla. Um casamento, para ser considerado estável, necessita de filhos para lhe dar sentido. Os sacrifícios ligados ao cuidado das crianças servem para fortalecer e embelezar a imagem pública da mulher.

Alguns dos informantes trouxeram à luz a dimensão psicológica da pobreza, como o estigma e perda de dignidade. Um homem abandonado pela mulher e pelos filhos, em Xilembene, Chokwé, considerou-se como parte de uma das categorias mais pobres do bairro, porque vivia sozinho sem ninguém que o ajudasse nos momentos mais difíceis, isto é, em caso de doença ou na necessidade de ajuda para efectuar qualquer trabalho.

A centralidade da figura feminina e materna nas famílias foi aqui sublinhada pois permanece a ideia de que manter uma família unida é característica da mulher e da sua capacidade de “segurar as pontas” – em vários sentidos, em termos de afectividade ou de saberes para lidar com problemas do quotidiano. Na verdade, elas desenvolvem, no quotidiano, estratégias de sobrevivência e de gestão dos seus parcos rendimentos, ajustando-os aos seus níveis de consumo e de redistribuição.

Causas da pobreza

As causas da pobreza são diversas e podem ser agrupadas de acordo com um conjunto de características predominantemente pessoais e sociais como sejam a morte do marido (para as viúvas), o provedor e responsável pelo seu bem-estar, segundo as concepções vigentes: a pouca saúde, o alcoolismo, a falta de oportunidades e serviços, o desemprego, a falta de crédito e a distorção do mercado (altos custos dos insumos agrícolas, mas baixos preços ao produtor), para além de causas ambientais e naturais como seja a seca ou as cheias.

Ainda no que tange às causas da pobreza, a corrupção, o não respeito pelos cidadãos e pelos seus direitos surgem igualmente com certa ênfase. Estes fenómenos limitam o acesso ao emprego, bloqueiam o acesso aos serviços que são devidos aos cidadãos, conduzem ao colapso das instituições estabelecidas para o bem-estar das comunidades e criam constrangimentos no acesso aos recursos.

Conclusões

As pessoas não são vítimas passivas da pobreza

Não obstante as mudanças ocorridas que tendem a uma melhoria no acesso a alguns serviços (educação, saúde, água) estas não tiveram um impacto profundo no quotidiano das comunidades e na redução da pobreza. Oitenta por cento dos chefes de agregados familiares da zona rural sustentam que a pobreza aumentou em função do acentuado declínio da produção agrícola, da redução acentuada de postos de trabalho devido ao encerramento das fábricas e das dificuldades de acesso ao crédito, o que leva a inferir que esforços redobrados devem ser empreendidos para transferência de maiores recursos e oportunidades para as comunidades estudadas. Na verdade, elas desenvolvem no quotidiano estratégias de sobrevivência e de gestão dos seus parcos rendimentos ajustando-os aos seus níveis de consumo e de redistribuição. Homens e mulheres procuram obter receitas através de trabalho sazonal, por vezes irregular, para fazer face ao ciclo da pobreza. Contribuem assim com o seu labor ou meios materiais para vencer as dificuldades de sobrevivência diária, estando desta forma em posição de se integrarem de forma activa e construtiva nas intervenções de desenvolvimento e de combate à pobreza absoluta.

A Lei de Família, percepções de pobreza e as relações no agregado familiar

Ao se adequar a Lei de Família à Constituição da República e aos demais instrumentos de Direito Internacional, eliminaram-se as disposições legais que sustentam a desigualdade de tratamento nas relações familiares.

A Lei de Família introduz outras modalidades de casamento que salvaguardam os legítimos interesses das partes e dão mais consistência à convivência das populações. Para além do casamento civil, ela reconhece o casamento religioso e o casamento tradicional, desde que sejam monogâmicos, garantindo assim, os direitos da mulher na constância da conjugalidade. Tratando das relações no interior do agregado refere que ambos os cônjuges têm responsabilidade pela família e podem representá-la e administrar os seus bens de modo igual. É de salientar que a Lei de Família consagra, como fundamentos para divórcio, a violência doméstica e o adultério. Na verdade, se implementada largamente, pode ter efeitos significativos e trazer mudanças cruciais para os direitos da mulher, quer a nível dos processos de decisão, como dos direitos de propriedade.

Mas os resultados apresentados acima permitem concluir que as desigualdades de género e de poder continuam a determinar e a estruturar as acções e os processos de tomada de decisão.

O sexo do decisor é determinante nas decisões e responsabilidades, controlo dos rendimentos, educação dos filhos. Há importantes consequências no bem-estar das famílias provenientes destas discrepâncias e poderes desiguais entre homens e mulheres. O poder de decisão baseado no género é uma questão de direitos e equidade, mas tem importantes consequências em termos de desenvolvimento e combate à pobreza. As evidências mostram como o controlo dos rendimentos por parte das mães tem um efeito nas despesas de consumo, na melhoria dos níveis de nutrição, no acesso à escola por parte das raparigas, etc.

Por outro lado, é grande o desconhecimento da Lei de Família e os direitos nela contidos, por parte da maioria da população entrevistada, o que torna igualmente difícil a sua implementação.

Devido à multiplicidade de pontos de vista sobre o que é a pobreza e as suas causas não é possível avançar com uma simples definição de pobreza e qualquer tentativa nesse sentido seria desvalorizar a contribuição de todos quantos se dignaram a dar o seu parecer.

A pesquisa revela que o conceito de pobreza é diverso, variando de acordo com os informadores, com a percepção individual no tocante à sua posição socioeconómica e à influência do sistema social onde estão inseridos nas/as suas acções. Tudo isto resulta na impossibilidade de avançar com uma única definição de pobreza. Todavia, certos traços comuns podem ser identificados, pois as definições ligam-se à falta de bens essenciais, de dinheiro, à ausência de bem-estar, à falta de acesso a recursos produtivos, à falta de roupas nomeadamente capulanas, mas igualmente a elementos não tradicionais como a exclusão social (no acesso a serviços e infra-estruturas), o infortúnio, o isolamento e a solidão. Estas percepções levam-nos a inferir que o conceito de pobreza está associado não apenas à posse de bens materiais e rendimentos mas, igualmente, a relações sociais mais estáveis e a uma maior intervenção do Estado na provisão de condições económicas e sociais conducentes ao seu desenvolvimento.

Notas:

  1. Departamento de Arqueologia e Antropologia da Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Universidade Eduardo Mondlane. Para mais informações vide Relatório DAA, “Avaliação Social Combinada Sobre Género e Pobreza em Moçambique”, Maputo, 2007.
  2. Isto é, baseadas nas distinções culturais que fazem sentido para os membros de uma dada sociedade.
  3. Veja o documento do G20, 2005.

Referências:

BOURDIEU, P., 1998. A dominação masculina. Lisboa: Celta Editores.
BOURDIEU, P., 1990. The Logic of Practice. Stanford: Stanford University Press.
BUTLER, J., 2001. El Género en Disputa. El feminismo y la subversión de la identidad. Barcelona: Editorial  Paidós Ibérica.
DAA, 2007. Avaliação Social Combinada Sobre Género e Pobreza em Moçambique. Maputo: DAA/World Bank.
G20, 2005. Relatório Anual da Pobreza 2005. Maputo
GEERTZ, C., 1998. O saber local. Petrópolis: Editora Vozes.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 1998. Inquérito nacional aos agregados familiares sobre condições de vida 1996/97. Relatório Final. Maputo: INE.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2004. Inquérito nacional aos agregados familiares sobre Orçamento Familiar 2002/03. Relatório Final. Maputo: INE.
MISAU, 2003. Inquérito Demográfico de Saúde, 2003. Maputo.
NARVAZ, M.; KOLLER, S., 2006. Mulheres vítimas de violência doméstica: Compreendendo subjectividades assujeitadas. In: Psico, 37 (1). pp. 7-13
SCOTT, J., 1988. Genre: une catégorie utile d’analyse historique. In: Les Cahiers du GRIF, “Le genre de l’histoire”, 37/38.  pp. 125-154

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Maputo, 28 a 29 de Novembro 2012

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setacinza Comunicado final

setacinza Fotos da Conferência

setacinza Documento da Conferência

setacinza Programa da Conferência


Entrega do Prémio da Rede de Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos 2012

setacinza Veja o anúncio dos vencedores
Graça Machel, Presidente da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade, posicionou-se sobre a revisão do Código Penal, subscrevendo as demandas da sociedade civil. Veja as cartas que ela endereçou a diversas personalidades da Assembleia da República.

Revisão do Código Penal

Direitos iguais no Código PenalA Assembleia da República (AR) está a preparar uma revisão do Código Penal, que data de 1886.

setacinza Nota ao Parlamento

Preocupado com o rumo que está a tomar a revisão do Código Penal, um grupo de organizações da Sociedade Civil diriguiu uma nota à AR. setacinza Carta da Rede de Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos
Logo da Rede DSR

Factsheet

Informação sobre os Direitos Sexuais e Reprodutivos das mulheres em Moçambique, recolhida pela Rede de Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos

Clique aqui para ler os artigos publicados em "Outras Vozes" (entre 2002 e 2015).
Mulher e Lei na África Austral - Moçambique