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Lei de Família:

Falemos de igualdade e justiça

WLSA Moçambique e Fórum Mulher

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 3, Maio de 2003

 

No âmbito das suas actividades para agilizar a discussão da proposta de Lei de Família no Parlamento, o Fórum Mulher e a WLSA Moçambique prepararam e publicaram um conjunto de artigos sobre o assunto. Estes artigos procuram discutir alguns aspectos da referida proposta que têm sido objecto de debate público, com a finalidade de destacar as necessidades, as expectativas e os interesses das mulheres em Moçambique, em relação a esta Lei.

I – OS FUNDAMENTOS LEGAIS DA PROPOSTA DE LEI DE FAMÍLIA

Depois de um ano e meio de espera (desde Agosto de 2001), a proposta de Lei de Família está finalmente agendada como o 13º ponto da agenda da sessão da Assembleia da República que teve o seu início em Fevereiro deste ano.

O anúncio público desta ocorrência alegrou-nos. Na realidade, depois de um longo processo de trabalho e de discussão (a proposta de Lei de Família começou a ser discutida em 1998), tínhamos dificuldade em compreender porque é que os poderes políticos não achavam prioritário levar imediatamente a proposta à discussão no Parlamento, com vista à sua rápida aprovação.

Com efeito, desde que o Governo criou a Comissão de Reforma Legal, com a respectiva Subcomissão de Reforma Legal para a Lei de Família, a tarefa de elaborar uma nova Lei de Família tem estado na agenda da maioria das organizações de mulheres do país, com um estatuto de prioridade. Foram muitos anos, muitas horas e muitos recursos empenhados neste processo, que concluiu com a finalização da presente proposta.

Pensamos que os principais momentos deste processo devem ser conhecidos. Neste artigo começaremos por discutir os fundamentos e a maneira como perspectivamos uma nova Lei de Família.

Em primeiro lugar, era preciso decidir exactamente que conteúdo deveria ter a nova lei. Tratava-se de tomar em consideração vários aspectos:

  • O respeito pela Constituição da República que, nos seus artigos 66º e 67º, consagra a não discriminação com base no sexo. Assim, qualquer lei que viole esta disposição é inconstitucional.
  • Depois, havia que ter em conta os instrumentos legais internacionais que o Governo de Moçambique ratificou ao longo de vários anos. Dois em especial eram de grande relevância: a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e a Convenção Internacional Contra Todas as Formas de Discriminação da Mulher (CEDAW). Como se sabe, uma vez ratificadas, estas convenções ganham força de lei.
  • Finalmente, mas não menos importante, era preciso garantir que a nova lei se adequasse às realidades sociais e económicas do país, numa altura de grandes transformações políticas, económicas e sociais.

Este último aspecto requer que nos debrucemos um pouco mais sobre ele.

Quando se afirma que a Lei de Família deve reflectir as realidades do país, isto não quer dizer que a Lei de Família deva ser um espelho das práticas existentes. Isso significaria tentar fixar no papel as realidades actuais (o que seria de certeza difícil porque a nossa sociedade é caracterizada pela pluralidade), de modo a tentar impedir novas transformações. Seria assumir que a maneira como hoje as famílias em Moçambique se estruturam é o tipo ideal e que, por isso, a lei deveria obrigar todos a viver de acordo com esse(s) modelo(s).

Não é isso que pretendemos. Não queremos fixar limites legais para as novas gerações, no que respeita à maneira como se devem relacionar na família e nas posições respectivas de cada um no seio familiar. O que pretendemos, isso sim, é estabelecer os princípios de uma normatividade onde as expectativas, as esperanças e os sonhos de cada um e de cada uma, se encontrem reflectidos. Com uma ressalva: ninguém, mas absolutamente ninguém, tem o direito de querer impor aos outros a sua visão do mundo, da sociedade e da família.

Por que? Porque perspectivamos o direito e a lei como instrumentos de mudança. Instrumentos de uma mudança que nos deve levar a respeitar cada vez mais os direitos de todos os cidadãos e cidadãs, dos mais velhos e dos mais novos, independentemente da raça, do local de origem e do credo religioso, tal como o decretam a nossa Constituição e os instrumentos legais internacionais que Moçambique subscreveu.

Foi tendo em conta estes considerandos que as organizações de mulheres se envolveram activamente na elaboração e na discussão das sucessivas propostas de Lei de Família. Para além dos instrumentos legais de que já falámos, um dos importantes suportes neste trabalho foram os resultados de pesquisa levados a cabo desde a independência, e que discutem as dinâmicas sociais a nível das famílias, tanto no campo como na cidade.

Este foi, pois, o nosso compromisso como activistas dos direitos humanos: participar activamente na elaboração de uma lei que respeite os princípios de igualdade e de justiça e que garanta a dignidade e o respeito de todos e de cada um na família. Uma lei que ajude a corrigir as actuais assimetrias e as desigualdades e que sirva de suporte legal para combater a violência doméstica. Uma lei que contribua para fazer da família um lugar de acolhimento, de conforto e de segurança. O que é que todos nós, homens e mulheres, precisamos para nos sentirmos amados e respeitados.

II – CULTURA E LEI

A proposta de Lei de Família que vai ser discutida no Parlamento contém mudanças significativas em relação à Lei actualmente vigente que, lembremos, data de 1966. Ou seja, foi elaborada e aprovada num dos períodos mais duros da ditadura salazarista, quando o controle da moral e dos costumes estava nas mãos da Igreja Católica e era rigoroso na defesa de uma moral conservadora que limitava severamente os direitos das mulheres. Em Portugal, poucos anos após o golpe de Estado do 25 Abril, a lei de 1966 foi substituída por uma Lei de Família mais progressista e mais de acordo com o respeito pelos direitos humanos das mulheres.

Aqui em Moçambique o processo foi lento, apesar das tentativas de revisão legal em 1978. Só vinte anos mais tarde, em 1998, é que se iniciou o processo de revisão que culminou com a elaboração da actual proposta de Lei de Família.

Se tomarmos em consideração as promessas e o ideário político da Frelimo, que dava ênfase à “emancipação da mulher”, este enorme atraso representa um enigma difícil de resolver. Mas se olharmos com mais atenção não só para os discursos mas também para a prática política, se calhar poderemos encontrar algumas das respostas possíveis. Na realidade, o que se disse a nível das intenções não coincidiu exactamente com o que se realizou e realiza na prática. E então no que se refere aos direitos humanos das mulheres, a situação é bem visível.

O problema que se levanta com uma lei que trate de um domínio como o da família, é que tudo o que diga respeito ao âmbito familiar é visto como fazendo parte do íntimo e do privado. Ou seja, há relutância em considerar que o que se passa a nível da família tenha a ver com o resto da sociedade e do país, regidos por uma lei fundamental, a Constituição, e pelos princípios inscritos nas Convenções internacionais ratificadas, que instituem os direitos humanos básicos de todos os cidadãos, sejam eles homens ou mulheres. As práticas e o imaginário social, onde estão firmemente ancoradas as assimetrias de género, entram assim em tensão com o normativo nacional e internacional.

Esta tensão é geralmente expressa como sendo um confronto de culturas. E, no caso concreto desta proposta de Lei de Família que vai à discussão no Parlamento, a questão é equacionada da seguinte maneira: “Essa proposta vai contra a nossa cultura”, ou então, “contra a nossa religião”. A cultura e a religião são então invocadas para limitar os direitos das mulheres e ganham expressão na violação dos direitos humanos.

Nestas reivindicações, em que a cultura é esgrimida como algo de sagrado e, logo, intocável, fica claro que a concepção que se tem é de que a cultura é alguma coisa que se fixa para todo o sempre. Só que à partida recusamo-nos a pensá-la desta maneira.

A cultura tem que ser vista na mudança e na diversidade. É também o legado que nos deixaram os nossos pais e avós, mas que nós usamos da melhor maneira possível, para conseguirmos viver em condições tão adversas como as que temos tido nos últimos anos. Por isso se pode dizer que a cultura é igualmente a arte de sobreviver com nada ou quase nada, a criatividade que usamos no dia a dia para conseguirmos alimentar, cuidar e educar os nossos filhos. A cultura só pode ser apreendida neste movimento e nesta diversidade. É um monumento à coragem e à bravura dos seres humanos, é um hino aos que não desistem, à sua força e perseverança. Neste sentido, a cultura é de todos nós, homens e mulheres, novos e velhos. É lá onde assentam as nossas identidades e lealdades e se fundamenta a nossa comum humanidade.

Utilizar a cultura como repressão é monstruoso. Usá-la para justificar a violação dos direitos humanos é criminoso e só pode revelar interesse na conservação de velhas hierarquias. A cultura converte-se assim numa arma de poder, que os poderosos esgrimem para controlar os outros.

Por isso, quando se ouve dizer que a igualdade de género na proposta de Lei de Família é um atentado à cultura moçambicana, pensa-se logo que, na ausência de outros argumentos, se busca a cultura para negar os direitos humanos das mulheres. Implicitamente está-se a dizer que a cultura moçambicana é feita e controlada pelos homens e que as mulheres se devem submeter a ela. Mascara-se portanto a dominação de género, falando nos imperativos da cultura.

Gostaríamos de concluir dizendo que nós, mulheres, temos o direito de viver com dignidade e em igualdade com os homens, na família e na sociedade. A nossa visão do mundo, a maneira como olhamos para a vida e as nossas práticas, são parte integrante da cultura moçambicana.

III – AS MULHERES E A PROPOSTA DE LEI

Quando o processo de revisão da Lei de Família se iniciou, logo no início, houve um jurista que perguntou o que é que nós, sociedade civil, tínhamos a ver com a elaboração de leis, e afirmou mesmo que deveríamos deixar essa tarefa para pessoas formadas em direito. Respondemos que não concordávamos, pois uma coisa é ter os conhecimentos técnicos para saber escrever o texto da lei, e outra é o direito inalienável dos cidadãos e cidadãs, de propor, discutir e aprovar os conteúdos de toda a legislação. Foi este espírito que ditou a nossa participação em todo o processo.

Ficou também claro, desde o princípio, que, para além da intervenção directa nos seminários organizados pela Subcomissão de Reforma Legal para discutir as sucessivas propostas de lei, era necessário alargar o debate, dar a conhecer o projecto de revisão da Lei de Família a outras mulheres para além das activistas dos direitos humanos. E foi isso que fizemos. Fomos aos bairros da cidade de Maputo, aos distritos em redor e às restantes províncias.

Algumas ONGs ligadas ao Fórum Mulher, como a MULEIDE, a AMMCJ e a WLSA Moçambique, entre os anos 1999 e 2000, organizaram “workshops” e encontros dirigidos a homens e a mulheres. Os temas da agenda eram:

  1. como é que a nova lei pode contribuir para acabar com a discriminação e as desigualdades entre homens e mulheres dentro da família,
  2. auscultação das propostas de mudança na lei vigente.

O objectivo comum era fazer o levantamento das expectativas em relação a uma Lei de Família, tantas vezes prometida e ansiosamente aguardada. O cometimento era em seguida encaminhar estas expectativas para o debate, dando voz aos que não podiam intervir directamente neste processo, apesar da própria Subcomissão ter já alargado as bases da discussão, organizando mesas redondas e seminários, onde estavam presentes representantes das províncias.

Em alguns casos, inclusive, decidimos realizar pesquisas pontuais para medir a extensão de tal ou tal fenómeno e compreender as lógicas de produção e de reprodução do mesmo. Por exemplo, quando se defendia que a nova lei deveria reconhecer outras formas de casamento como o tradicional, o religioso e a união de facto, desde que respeitassem os requisitos previstos na lei, alguns argumentavam que este último tipo de união não tinha expressão fora da cidade de Maputo e que, por isso, a lei não deveria incluir o seu reconhecimento. Pesquisas realizadas, no entanto, demonstraram a crescente prevalência das uniões de facto em zonas rurais, como resultado da desestruturação familiar.

Mas voltando ao processo de discussão da proposta de Lei de Família, alguns dos resultados merecem ser debatidos. Em primeiro lugar, foi apontada com muita insistência a questão da partilha de bens em caso de divórcio ou de separação, sendo que, para as mulheres vivendo em uniões de facto, a situação é muito pior pois nem protecção da lei há. Normalmente estas vêem-se privadas de tudo, da terra que trabalharam durante anos, dos bens da casa e em alguns casos até dos bens pessoais.

Em seguida, um outro aspecto que preocupava bastante as mulheres era a poligamia. Apesar da visão comummente aceite de que em zona rural a poligamia é bem vista pelas mulheres porque as alivia do fardo do trabalho doméstico, não encontramos uma só que a defendesse. Uma participante de Maringué, inclusive, afirmou que as mulheres num casamento poligâmico eram o “tractor dos pobres”.

Outros temas debatidos foram:

  • Idade núbil – a preocupação central eram os casamentos prematuros, defendendo-se que se deveria fixar a idade de 18 anos para os jovens de ambos os sexos. Falou-se muito nos “direitos das crianças”, embora de maneira abstracta porque os participantes não conheciam nenhum instrumento legal em particular.
  • Formas de casamento – salientou-se que, mesmo sabendo que a única forma de casamento válida pela lei vigente é o casamento pelo civil, este nem sempre representa uma possibilidade. Por isso se achou que as pessoas deveriam poder optar por qualquer forma de casamento, e exigir o seu reconhecimento, desde que respeitassem os princípios consagrados na lei: ser uma “união voluntária e singular”.
  • Chefia de família – o consenso é de que homens e mulheres devem ter o mesmo estatuto no casamento e nenhum deve mandar no outro.
  • Residência da família – também aqui a decisão deve ser tomada pelos dois cônjuges e não somente pelo marido.

Para acompanhar a discussão produzimos brochuras e cartazes, focando aspectos específicos.

O facto é que uma Lei de Família representa muito para nós, mulheres, e por isso, na medida das nossas disponibilidades, despendemos recursos materiais e humanos para garantir a ampla difusão das propostas. No entanto, agora, que já se completaram cinco anos desde que este processo se iniciou, estamos a ouvir dizer que é preciso recomeçar tudo de novo e ir novamente às províncias para discutir o assunto. Mas afinal isto quer dizer o quê? Quanto a nós, parece-nos que esta é mais uma prova da má vontade em, finalmente, aprovar uma lei que garanta a igualdade de homens e de mulheres na família. Depois de um ano e meio de atraso em agendar a proposta de Lei de Família no Parlamento, agora encontra-se mais um motivo de adiamento.

Achamos que é tempo dos poderes políticos mostrarem maior compromisso para com as necessidades e os interesses dessa parte da população, as mulheres, que normalmente é excluída dos direitos humanos. Dessa parte da população que continua a ser privada do respeito que lhe é devido na família e na sociedade.

Esperamos sinceramente que os métodos utilizados pelo presidente Bush para declarar guerra ao Iraque não se tornem moda, e que o assunto da Lei de Família não seja tratado à margem dos fundamentos legais garantidos pela Constituição.

IV – CHEFIA DE FAMÍLIA

Muitas pessoas que nem sequer leram a proposta de Lei de Família, têm, no entanto, ideias muito firmes a esse respeito. Umas das coisas que mais se tem propalado nos bares, no intervalo do chá nos serviços e até nos corredores do Parlamento é que esta lei quer pôr as mulheres a mandar nos homens. Como se pode imaginar, perante esta informação, homens e mulheres ficam escandalizados e lamentam que se chegue a tais extremos de radicalismo.

Na realidade, esta afirmação não corresponde à verdade e é deliberadamente espalhada só para denegrir uma proposta de lei que levou tantos anos a ser concretizada, custou imensos recursos financeiros e humanos e é tão importante para melhorar a situação dos direitos humanos das mulheres. Achamos por isso importante esclarecer o leitor e todos os que estejam interessados neste aspecto específico, que, na proposta de Lei de Família, ele aparece com a designação de “Representação de Família” (Artigo nº 1674).

No Código Civil actualmente vigente (de 1966), está prescrito que o cônjuge de sexo masculino detém o que chamam de “Poder Marital”. Como tal, é determinado que: “O marido é o chefe da família, competindo-lhe nessa qualidade representá-la e decidir em todos os actos da vida conjugal comum, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes”.

Não é, pois, de espantar que este aspecto concreto tenha merecido a atenção das mulheres. Deveremos continuar a aceitar que dentro de casa sejamos tratadas como seres humanos de segunda categoria? Porque é que trabalhando tanto como os homens, assumindo até por vezes responsabilidades mais pesadas, tenhamos no final que nos submeter à sua autoridade?

Por isso, na proposta de Lei de Família, elimina-se a expressão “Poder marital” substituindo-a por “Representação da família”, estabelecendo que “A família pode ser indistintamente representada por qualquer dos cônjuges, a menos que estes decidam em contrário.”

Claro que não faltam argumentos para defender na lei a manutenção da supremacia do marido em relação à mulher. Uma parte deles é muito grosseira e refere-se a uma natureza feminina e masculina: fazem-se comparações com o mundo animal e afirma-se que “Onde há galos não cantam galinhas”. Se nós nos calarmos, se calhar a seguir vão dizer que um galo numa capoeira não se contenta só com uma galinha e que, por isso, devemos inscrever a poligamia na lei!

Outros argumentos dizem que a chefia de família deve caber ao homem, porque é ele que tem as responsabilidades maiores no sustento da casa. No entanto, nada é mais falso do que este argumento. É verdade que pela divisão do trabalho o papel do homem seria esse, de garantir a subsistência familiar, enquanto às mulheres caberia o cuidado dos filhos, dos idosos e dos doentes, e os variados trabalhos domésticos que fazem funcionar uma casa. Mas, se formos a ver os resultados de diversos inquéritos ao nível nacional, constatamos que 80% da força de trabalho feminina estão na agricultura familiar, que é quem assegura a subsistência das populações em Moçambique. Poderíamos pois afirmar que as mulheres são quem alimenta esta terra.

No entanto, mesmo conhecendo este facto, isso não nos dá o direito de exigir a inversão da lei vigente, de modo a garantir que a chefia da família seja apenas das mulheres. Que fique claro: nós, mulheres, lutamos pela igualdade e somos acérrimas defensoras dos direitos de todos os cidadãos. Homens e mulheres devem gozar de direitos iguais e do mesmo acesso aos recursos. A ambos devem ser dadas oportunidades iguais, para que se realizem como seres humanos.

O que se prevê na proposta de Lei de Família é uma forma de família em que homens e mulheres sejam companheiros, e juntos organizem a sua vida tendo em vista o bem comum. Isso aparece expresso quando se fala da “Representação Familiar”, mas também no Artigo nº 1677, quando se trata da “Administração de Bens”: “A administração dos bens do casal incumbe aos cônjuges em igualdade de circunstâncias devendo o casal privilegiar o diálogo e o consenso na tomada de decisões que possam afectar o património comum ou os interesses de filhos menores”.

Quem pode estar contra a ideia de que uma família deve funcionar harmoniosamente, regendo-se pela justiça e pela igualdade?

V – A IDADE NÚBIL

Se o casamento é um acto que implica das partes interessadas um envolvimento consciente, então a idade com que os rapazes e as raparigas são autorizados a contrair matrimónio (idade núbil) é muito importante. Por isso, na actual Proposta de Lei de Família propõe-se que seja fixada igual idade núbil para ambos, pondo fim às disparidades que existem no actual Código Civil. Esta proposta tem sido muito debatida e algumas pessoas estão radicalmente contra ela.

Os argumentos apresentados situam-se em torno de duas grandes questões: a primeira é que, do ponto de vista biológico, a rapariga alcança mais cedo do que o rapaz a maturidade física; a segunda questão prende-se com o facto de que se acha que quando os rapazes se casam, devem já ter uma situação económica estável, de modo a assegurar o sustento da nova família.

O primeiro argumento é insultuoso para as mulheres, porque sugere que estas só têm que estar fisicamente aptas a procriar para se poderem casar. Ou seja, reduz o casamento a fins reprodutivos. Por outro lado, hoje nós sabemos, através de estudos científicos, que não existe de facto nenhuma sustentação para se considerar como verdadeira a precocidade do desenvolvimento físico e psíquico da mulher. Como se vê, não há sustentabilidade científica para defender a manutenção na lei de tratamento diferencial em relação à idade núbil do rapaz e da rapariga.

O segundo argumento, de que os rapazes quando se casam têm que estar em condições de sustentar a nova família, é igualmente muito utilizado. Tal como constatámos relativamente à chefia da família, a questão central é que os papéis e as funções que as mulheres e os homens desempenham na casa e na sociedade são classificados de forma diferente e desigual.

O destino principal das mulheres é a maternidade e o trabalho da casa. O destino dos homens é velar para que as mulheres sejam boas mães, boas donas de casa e boas esposas. Para isso, uns e outras devem aprender desde pequenos a conhecerem o seu lugar no mundo e a não sair dele. A família, a igreja e a sociedade encarregam-se de ensinar, de fazer cumprir e de sancionar todos e todas que um dia tiveram (e têm) a ousadia de lutar por um sonho de igualdade.

No nosso país temos muitos e variados exemplos da aplicação do princípio da desigualdade. Embora as mulheres sejam 51% da população moçambicana, apenas 1/3 dos alunos de sexo feminino concluem o primeiro nível do ensino primário. Embora as mulheres sejam 51% da população, mais de 80% são camponesas pobres. Embora as mulheres sejam 51% da população, muito mais de metade nunca viu uma escola, nunca agarrou num lápis nem escreveu a palavra liberdade.

Muitas de nós, jovens meninas de 8, 9 e 10 anos somos tiradas da escola e casadas prematuramente. Na realidade, somos entregues como um objecto a um homem que nos rouba a juventude e os sonhos.

Famílias e líderes religiosos em nome de uma ordem divina e da desigualdade fundadora, continuam a defender que os deuses e a natureza nos fizeram assim: emotivas, pouco inteligentes e vocacionadas para o lar. Mas que deuses e que natureza são estes que dividem assim os seres humanos?

Uma idade núbil diferente para rapazes e para raparigas não significa mais do que a cumplicidade com a violação dos direitos humanos, com a exclusão das mulheres da escola a que temos direito, do crescimento harmonioso, da capacidade de opção.

Aos rapazes e às raparigas devem ser dadas as mesmas oportunidades de crescer, de estudar e de se afirmarem como seres humanos. A nossa humanidade de mulheres não se esgota na maternidade. Queremos escolher em liberdade ser esposas e mães. Queremos ter os mesmos direitos e as mesmas possibilidades de os exercermos.

Não basta que a Constituição da República defenda a igualdade entre todos os seres humanos. É necessário que haja mecanismos legais de protecção dos direitos. É necessário que sejam punidos todos aqueles que atropelam na prática quotidiana e familiar os direitos humanos.

Por isso exigimos a aprovação da Lei de Família. Por isso nos batemos e bateremos contra a hipocrisia de todos aqueles que, em nome da cultura e da religião, nos querem roubar o direito de fazermos parte integrante da humanidade.

VI – A IMPRENSA E A PROPOSTA DE LEI

Através do que se fala em público e em privado, temos vindo a perceber que muitas pessoas, mesmo aquelas que em função das suas responsabilidades teriam a obrigação de o fazer, não leram a proposta de Lei de Família. E, no entanto, todos comentam este ou aquele aspecto concreto. De onde lhes vem então a informação? A fonte mais importante é a imprensa e por isso vale a pena examinar o que é que foi dito nos jornais sobre a proposta de Lei de Família.

Os jornais normalmente não se limitam a apontar este ou aquele facto, o jornalista que escreve a notícia transmite também o seu ponto de vista e a sua posição em relação ao assunto em causa. Às vezes essa não é a intenção do autor, mas fica implícito na maneira como apresenta a informação.

Também sobre a proposta de Lei de Família as notícias nunca foram neutras. No conjunto dos artigos publicados sobre o tema, entre os anos 1999 e 2000, foram passadas algumas mensagens:

  • A proposta de Lei de Família interessa sobretudo às mulheres – quase ninguém se referiu aos direitos das crianças que nesta proposta são amplamente defendidos.
  • A proposta de Lei de Família retira o poder aos homens para dá-lo às mulheres: “agora as mulheres querem mandar” – poucos se deram ao trabalho de analisar o conteúdo da proposta e ver que o que se defende não é a supremacia feminina, mas a igualdade entre homens e mulheres.
  • A proposta de Lei de Família teve por detrás um “grupinho” de mulheres que não representam as mulheres do campo – não se falou nos vários debates que se realizaram nas províncias, organizados por ONGs femininas e pela Subcomissão de Reforma Legal. Esquece-se igualmente que os seminários e workshops em que se discutiram as sucessivas versões da actual proposta contaram com a presença de representantes de organizações religiosas, de grupos políticos e de outros sectores da sociedade civil. Também estes são “grupinho”?

Às vezes o jornalista era movido pela intenção de fazer “sensação” e por isso atribuía títulos que atraíssem o leitor, mas que contribuíram definitivamente para forjar uma representação comum sobre a proposta de Lei de Família como algo estranho, radical e atentatório da cultura moçambicana. Vejamos alguns exemplos:

  • “Lei de família: Mulheres não querem marido como chefe de família” – Savana, 14 de Abril de 2000
  • “Anteprojecto de Lei da Família: Vem aí a revolução no matrimónio” – Domingo, 16 de Abril de 2000
  • “Na nova Lei da Família: União de facto passou a casamento de facto” – O Popular, 21 de Abril de 2000.

Por isso nós podemos afirmar: o papel de uma parte da imprensa neste processo de elaboração da proposta de Lei de Família foi danoso para os interesses das mulheres. Contribuiu para criar e consolidar representações negativas sobre o conteúdo da proposta e sobre quem participou na sua elaboração. Poucos artigos tiveram realmente a intenção de informar com isenção o leitor, para que este pudesse formar a sua própria opinião.

Neste momento em que a proposta de Lei de Família vai ser levada à discussão no Parlamento, lançamos um apelo:

  • Que os órgãos de informação divulguem o seu conteúdo. Dada a extensão do documento, isto poderá ser feito abordando o assunto capítulo a capítulo, sobretudo aqueles que introduzem mudanças em relação à lei vigente.
  • Que os deputados e o público em geral leiam o documento, se tiverem acesso ao mesmo, ou então se procurem informar junto a quem de direito.

Não consideramos nem sério nem honesto que um assunto da maior importância para as mulheres e para o desenvolvimento do país seja tratado com tanta ligeireza. Vamos ler, estudar e debater, num espírito de abertura que deve caracterizar uma verdadeira democracia, em que os interesses e as necessidades de todos e de todas são tomados em consideração.

 

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