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Aprovação da “Lei Sobre a Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher”. Que resultados?

Maria José Arthur

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 28, Novembro de 2009

 

A partir de 2001, desde que se iniciou um processo para elaborar uma proposta de lei contra a violência doméstica percorreu-se um longo caminho. Embora todas/os concordassem que este tipo de violência era inadmissível, discordava-se de tudo o mais: das formas de que se pode revestir, das causas, da prevenção e do tratamento legal a dar ao problema. Esta falta de consenso era previsível, se considerarmos que as ONGs que actuam na área dos direitos humanos e, mais especificamente, dos direitos humanos das mulheres apresentam uma grande diversidade. No entanto, esse mesmo processo permitiu a criação de um espaço que contribuiu para o estabelecimento de bases de entendimento, que, por sua vez, possibilitou a elaboração do Anteprojecto que em 2007 se depositou na Assembleia da República.

Várias questões fundamentais se colocavam: o que tem a violência doméstica contra as mulheres de diferente em relação a outros tipos de violência? Porque é que atinge mais as mulheres? Porque é que as mulheres que são vítimas se sentem culpadas da sua própria agressão? Porque é que elas procuram quase sempre desculpar o agressor? Porque é que uma mulher com recursos suficientes para ser economicamente independente se mantém numa relação violenta?

Estes e outros questionamentos não são novos, estavam presentes quando, a partir do final dos anos 60 e princípios dos anos 70, se começou a denunciar a violência doméstica contra as mulheres, no contexto da segunda vaga do feminismo. O que se procurou foi um modelo explicativo que permitisse desvendar as aparentes “perversões” e “desvios” desta forma de violência em relação a outros tipos de agressão. Até ao momento, estavam disponíveis modelos explicativos que enfatizavam características psicológicas do agressor e catalogavam o problema da violência conjugal como um comportamento raro ou anormal, explicado por questões de personalidade, enfermidade, dependência do álcool ou da droga, o que desresponsabilizava o agressor pelos seus actos. Outras teorias propunham explicações que relacionavam factores sociais com comportamentos individuais, por exemplo, a pobreza ou o desemprego (Blair, 2003). A violência seria então considerada como consequência de stress e frustração, como uma forma de eliminar a tensão. Estes e outros modelos explicativos, ainda actualmente aceites em certos círculos, não permitem dar conta da complexidade do fenómeno da violência doméstica contra as mulheres. Mais grave ainda, estas explicações distorcem e ocultam a realidade, contribuindo para minimizar ou relativizar a gravidade desta forma de violência.

Foi o movimento mundial de mulheres, e em particular o movimento feminista, que conceptualizou a violência contra as mulheres como um problema de poder, especificamente como desequilíbrio de poder entre os géneros. Além disso, houve que visibilizar a existência desta violência, tão incrustada nas práticas culturais que não se distinguia do entranhado social. Para tal foi necessário dar-lhe nome, ou nomes, à medida que se iam identificando as suas distintas formas de manifestação: violência física, agressão emocional, ataque sexual, agressão patrimonial, violência entre o casal, incesto, violação no casamento, abuso, entre outros (Cabañas, 2001).

Foi dentro deste espírito que, no Preâmbulo do Anteprojecto de lei elaborado pela sociedade civil, se afirmava:

  • “Reconhecendo que a violência doméstica contra as mulheres está vinculada à desigualdade de poder entre mulheres e homens no âmbito das relações familiares, nas dimensões do social, do económico, do religioso e do político, apesar de todos os esforços das legislações a favor da igualdade; (…)
  • Reconhecendo a família como um espaço social, sinónimo de segurança, protecção e afecto, mas também uma rede intrincada e complexa de relações de poder, é doloroso constatar que particularmente para as mulheres, se tem convertido cada vez mais num espaço social de risco”.

Com este Preâmbulo, pretendia-se definir a violência doméstica contra as mulheres como violência de género, em consonância com os instrumentos legais internacionais ratificados por Moçambique. Mais ainda, previa-se que a lei interviesse em várias vertentes, nomeadamente:

  • Criminalização do agressor
  • Assistencialismo
  • Prevenção

Ou seja, para além da criminalização dos agressores, pretendia-se também vincular o Estado às suas obrigações de protecção e assistência às vítimas e de prevenção.

Entretanto, no Parlamento, no processo de aprovação da lei, há dois momentos a assinalar:
1º – Aprovação da lei na generalidade – 30 de Junho de 2009
2º – Aprovação da lei na especificidade – 21 de Julho de 2009

Entre um e outro momento fizeram-se mudanças muito radicais no Anteprojecto de lei e o resultado final, embora mantendo formalmente algumas das suas características, é, na essência, muito diferente. O exercício que fazemos a seguir visa comparar e discutir as diferenças centrais que a nova lei (Lei nº 29/2009) apresenta em relação ao Anteprojecto de lei elaborado pela sociedade civil.

Sobre o reconhecimento de que a violência doméstica contra as mulheres é violência de género

A primeira grande alteração foi a retirada do Preâmbulo que, embora longo, era importante para a justificação e compreensão do fenómeno da violência doméstica contra as mulheres, enquanto violência de género. Ou seja, ao propor-se um modelo explicativo que enfatizasse a desigualdade de poder entre mulheres e homens na família e na sociedade, pretendia-se definir não só as bases para a interpretação da lei, como também avançar no sentido de incentivar acções de prevenção, pela desocultação das lógicas subjacentes ao fenómeno da violência doméstica contra as mulheres.

Em lugar do referido preâmbulo, no texto da Lei nº 29/2009 invoca-se a necessidade de “legislar sobre a violência doméstica praticada contra a mulher” e citam-se, da Constituição da República de Moçambique (CRM):

  • A alínea c) do número 1, do artigo 183º – que diz que a iniciativa de lei pertence aos deputados;
  • O número 1 do artigo 179º – sobre a competência da Assembleia da República em aprovar leis constitucionais.

Sobre as responsabilidades do Estado no combate à violência doméstica contra as mulheres e a protecção às vítimas e às mulheres que denunciam

Na versão final são eliminadas as responsabilidades do Estado quanto à protecção e assistência às vítimas, bem como à prevenção. Passemos em revista o que foi suprimido.

Quanto ao objectivo da lei (Artigo 2º), é afirmado que:

  • “É objectivo desta lei, prevenir, sancionar os infractores e prestar às vítimas de violência doméstica a necessária protecção, garantir e introduzir medidas que forneçam aos órgãos do Estado os instrumentos necessários para a eliminação da violência doméstica.

No entanto, comparando com o Anteprojecto, vê-se que foi retirado um parágrafo que preconizava as responsabilidades do Estado no compromisso com o combate contra a violência doméstica. A parte eliminada referia que:

 

2. É também objectivo desta lei prestar às vítimas de violência doméstica a máxima protecção contra o abuso de poder no relacionamento entre pessoas no âmbito doméstico e introduzir medidas que garantam que os órgãos competentes do Estado assegurem apoio total e efectivo às previsões e assegurar que o Estado se comprometa com a eliminação da violência doméstica.

 

No que respeita à protecção da vítima (Artigo 6º, Medida Cautelares) retirou-se a explicação sobre o que são Medidas Cautelares e outros mecanismos que visavam a sua protecção. Vejamos as partes eliminadas:

 

Medidas cautelares visam prevenir a repetição da violência doméstica contra as mulheres mediante a reeducação do agressor e o fortalecimento da auto-estima da mulher e garantir o cumprimento das responsabilidades familiares do agressor.

 

As medidas de segurança são, entre outras:
a) Retirar temporariamente o agressor da casa em que coabita com a mulher agredida;
b) Proibir o agressor de passar perto da casa e do local de trabalho, ou lugares habitualmente frequentados pela agredida, sempre e quando esta medida não interfira nas relações laborais do agressor;
c) Deter em flagrante delito o agressor, por um período não superior a 48 horas;
d) Advertir o agressor que incorrerá em delito se praticar actos de intimidação ou agressão contra a mulher ou contra qualquer membro da sua família;

 

Como se pode ver, estas medidas suprimidas visavam garantir uma efectiva salvaguarda e segurança da pessoa que denuncia. Na lei aprovada, embora permaneçam algumas medidas de protecção, retirou-se a possibilidade de separar o agressor da sua vítima, pelo menos durante 48 horas, o período mínimo para que ele receba advertências da polícia no sentido de não intimidar, ameaçar ou agredir a vítima ou um seu familiar que lhe dê guarida ou intervenha em sua defesa.

Na sequência destas medidas de protecção a proposta inicial previa também a prisão preventiva do agressor, o que foi omitido:

 

Artigo 33 (Da Prisão Preventiva)
1. Há lugar a prisão preventiva sempre que:
a) A pessoa agressora seja surpreendida em flagrante delito na prática de qualquer uma das formas de violência doméstica contra a mulher;
b) Haja indícios razoáveis para supor que a pessoa agressora possa fugir ou destruir, falsificar ou corromper as provas, ou caso se verifique perigo de perturbação da ordem pública ou perigo para a integridade da vítima ou de testemunhas.
2. Sempre que ocorra a detenção da pessoa agressora, esta deverá ser submetida ao primeiro interrogatório a ser efectuado nos termos gerais.

Sobre as responsabilidades do Estado na denúncia e prevenção da violência doméstica contra as mulheres

No Anteprojecto entregue pela sociedade civil, um outro conjunto de medidas visava responsabilizar o Estado pelo encaminhamento e educação da nova geração para a igualdade, como principal meio de prevenção da violência doméstica contra as mulheres, através do desafio à estrutura patriarcal que organiza as nossas sociedades. Infelizmente, a maior parte destas medidas foi excluída, como apontamos a seguir.

Assim:

Saíram as obrigações do Estado que garantiam o verdadeiro empenhamento na educação para a mudança, na componente da prevenção:

 

Artigo 4 (Das Obrigações do Estado)
1. As instituições do Estado ligadas à educação, informação, saúde, mulher, justiça, cultura, juventude, acção social e segurança, devem:
a) Impulsionar o processo de modificação dos padrões socioculturais de conduta de mulheres e homens, incluindo o desenho de programas e curricula de educação formal e não formal a todos os níveis do processo educativo;
b) Difundir o direito a uma vida sem violência;
c) Instruir e sensibilizar o pessoal de saúde a proporcionar tratamento adequado e privacidade às mulheres vítimas de violência, e evitando a repetição de exames clínicos que afectem a sua integridade física e psicológica;
2. As instituições do Estado ligadas à mulher, justiça, educação, saúde, acção social, segurança, em coordenação, com especialistas e investigadoras do tema da violência doméstica contra as mulheres, deverão desenhar uma política e o respectivo Plano Nacional para prevenir, atender e erradicar a violência doméstica contra as mulheres.
3. O Plano Nacional deve conter medidas educativas, de investigação, de difusão, de atendimento integral às mulheres agredidas, de sensibilização e capacitação a magistrados judiciais e do Ministério Público, polícias, funcionários/as e outros quadros das instituições públicas ou privadas que estejam envolvidos na prevenção, sanção e protecção das mulheres que sofrem violência doméstica.
4. A instituição do Estado ligada à mulher deve constituir um observatório sobre a violência doméstica contra a mulher com o objectivo de recolher informações e fazer uma avaliação contínua da aplicação desta lei.
5. O Instituto Nacional de Estatística deve compilar e publicar os dados sobre casos de violência doméstica em todo o país para determinar a sua incidência e avaliar posteriormente o impacto da implementação desta lei.
6. O orçamento do Estado deve prever e alocar fundos para as actividades das organizações não governamentais que prestam atendimento e assistência às mulheres vítimas de violência doméstica.

 

Para além disso, suprimiu-se a responsabilização de todos os agentes que lidam com a violência doméstica contra as mulheres (agentes sanitários e activistas de ONGs, p.e.) pela denúncia dos casos que lhes chegam à mão (veja-se a parte sublinhada):

 

Artigo 29 (Encaminhamento)
1. Nos casos de violência física, psicológica ou sexual, as vítimas deverão ser imediatamente conduzidas, pela autoridade que recebe a denúncia, às instituições hospitalares para receberem os tratamentos adequados e serem avaliadas as respectivas lesões.
2. Dependendo da sua gravidade as vítimas de violência doméstica devem ser encaminhadas com urgência às unidades sanitárias mais próximas e só depois proceder-se-á à denúncia.
3. Sempre que derem entrada nas unidades sanitárias casos suspeitos de violência doméstica contra a mulher, os agentes de saúde devem encaminhar a vítima para as autoridades perante as quais se deve apresentar a denúncia, acompanhada do respectivo relatório clínico.
4. As organizações não governamentais que recebem e apoiam as vítimas de violência doméstica devem encaminhá-las às entidades competentes para receber a denúncia, sem prejuízo do apoio psicológico, jurídico ou de outra natureza que possa ser prestado.

 

O que se perdeu com isto? Perdeu-se a possibilidade de ter um instrumento concreto e específico para iniciar novas práticas quanto ao tratamento de casos de violência doméstica. Desperdiçou-se também uma oportunidade para comprometer um maior número de instituições no combate à violência doméstica contra as mulheres.

Finalmente, omitiu-se o proposto para a Assistência Jurídica e Patrocínio Judiciário (art. 31º do Anteprojecto):

 

1. No momento da denúncia, as autoridades devem informar a vítima sobre os seus direitos, nomeadamente, dos mecanismos necessários para beneficiar do patrocínio judiciário e assistência jurídicas gratuita e sobre toda a tramitação do processo.
2. As vítimas podem solicitar assistência jurídica e patrocínio judiciário às organizações não governamentais.
3. As organizações não governamentais vocacionadas para a prestação de assistência jurídica poderão representar as vítimas em tribunal, quando os respectivos membros estejam habilitados para o efeito.

 

Estas medidas dispunham-se a acautelar que a vítima teria assistência legal, de modo a usufruir plenamente dos direitos que lhe estão consagrados.

Sobre as penas

Uma das inovações que propunha o Anteprojecto era a aplicação de penas alternativas de trabalho na comunidade. Não se pretendia com isto minimizar o peso das punições ao agressor, mas antes encontrar formas menos onerosas (para o Estado) e mais eficientes de dissuasão. Ora, a lei aprovada, se bem que mantenha as penas alternativas preconizadas no Anteprojecto, suprime, no entanto, os mecanismos de controlo da sua aplicação:

 

1. As entidades beneficiárias do trabalho devem remeter à Acção Social um relatório no início e outro no fim da prestação do trabalho que é posteriormente remetido ao tribunal acompanhado de um parecer técnico.
2. Sempre que for constatado qualquer irregularidade ou anomalia no trabalho a entidade beneficiária deve comunicar imediatamente à acção social que elaborará um parecer que é remetido ao tribunal.
3. De acordo com o conteúdo dos relatórios apresentados, o juiz decidirá pela extinção da pena pelo cumprimento ou pela substituição da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade por multa se o trabalho não for considerado satisfatório.

 

Que consequências surgem desta alteração? De imediato, pensa-se logo na possibilidade de que um indivíduo condenado a trabalhos comunitários possa não cumprir a sua pena (ou então fingir que a cumpre), sem que existam meios para a reposição da justiça, pela substituição por outra pena que se aplique (multa, por exemplo).

Ainda sobre as penas, a lei aprovada mantém, tal como proposto, que “Ter havido actos demonstrativos de arrependimento” deve ser considerado como uma atenuante. Todavia, excluiu-se o seguinte articulado:

 

3. Para os casos em que se verifique o ciclo da violência não serão consideradas as circunstâncias atenuantes previstas neste artigo.

 

O que se pretendia ao rejeitar o arrependimento como atenuante quando se verifica o ciclo de violência? Era impedir que um agressor reincidente (existência do ciclo de violência) fosse favorecido por essa medida, bastando para tal expressar verbalmente o seu “remorso” ou a sua “dor” com o acontecido! Dito de outra maneira, a redacção actual da lei permite que o agressor beneficie sempre de atenuantes.

Sobre a violência sexual

O que no Anteprojecto era designado de “violência sexual” foi alterado, passando a chamar-se de “cópula não consentida”, restringindo-se o crime e atenuando-se as penas. Na versão original, que a seguir se apresenta, este crime era tipificado de forma mais abrangente e incluindo, mais do que a cópula, outros actos forçados de conotação sexual:

 

(Violência sexual)
1. Será punido com a pena de prisão maior de dois a oito anos aquele que obrigar a mulher com quem tem relações familiares ou amorosas a manter contacto sexualizado físico ou verbal, ou a participar em outras interacções ou relações sexuais mediante o uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou qualquer outro acto que anule ou limite a vontade pessoal, consigo ou com terceiros.

 

De salientar também o aligeiramento da pena proposta, de dois a oito anos de prisão, que foi alterada para uma moldura penal de “seis meses a dois anos de prisão e multa correspondente” (Art. 17º da Lei 29/2009).

Entretanto, na nova Lei foi acrescentado o Artigo 18º, Cópula com transmissão de doenças, desejando-se com isso sancionar os que, estando “conscientes do seu estado infeccioso”, mantiverem relações sexuais com a esposa, parceira ou namorada. A pena é agravada se dessa cópula resultar a transmissão do vírus da SIDA.

Esta medida pretende tratar de um problema muito grave nestes último anos, que é o da contaminação do vírus do HIV por meio de relações sexuais, de forma propositada ou até inconsciente. A grande dificuldade será provar que um indivíduo conhecia o seu estado infeccioso. Para além disso, se considerarmos que nas nossas sociedades as ITS (Infecções Transmitidas Sexualmente, como a SIDA, a gonorreia e outras) são consideradas “doenças que se pegam com as mulheres”, há um grande risco de que sejam as mulheres maioritariamente acusadas de contagiar os parceiros sexuais, mesmo sem os fundamentos e as provas exigidos por lei.

Sobre a violência resultante de “práticas tradicionais”

Algumas formas de violência para com as mulheres são ocultadas pelas chamadas “práticas tradicionais”, em relação às quais se tem relutância em intervir, o que é fundamentado pela ideia da “inviolabilidade da cultura”. Foi tendo em conta este aspecto que se propôs no Anteprojecto o articulado a seguir, que foi completamente rejeitado e que não consta da lei aprovada:

 

2. Será igualmente punido com pena de prisão aquele que através de práticas tradicionais atentar contra os direitos sexuais e reprodutivos da mulher.

 

Estariam aqui incluídas as cerimónias de viuvez ou a obrigatoriedade de casamento da viúva com o irmão do falecido, como se este a “herdasse”, a mutilação genital feminina ou o alongamento dos pequenos lábios (considerados pela lei internacional como uma forma de mutilação). Com a eliminação desta disposição perdeu-se uma oportunidade de condenar, sem ambiguidades, as práticas culturais que atentam contra os direitos humanos das mulheres.

Outros aspectos suprimidos

Foram igualmente retirados do Anteprojecto de lei outros articulados que diziam respeito a “direitos processuais das vítimas” e “diligências”. Eram medidas que visavam garantir a qualidade de atendimento e os direitos das vítimas de violência na polícia, procurando evitar que após terem sido agredidas em casa, viessem a sofrer novos insultos ou ameaças (situação a que se dá o nome de “re-vitimização”).

Sobre o Glossário

Dado estar-se a legislar pela primeira vez sobre um fenómeno social, como a violência doméstica contra as mulheres, ainda pouco estudado e conhecido não só pelo público em geral mas também por todos os que têm por obrigação fazer cumprir a lei, acrescentaram-se algumas definições que pretendem ajudar à compreensão do problema. Na lei aprovada, estas definições foram agrupadas no final, sob a designação de “Glossário”. Todavia, foram suprimidas as duas definições que se apresentam em seguida:

 

Exercício desigual de poder: toda a conduta dirigida a afectar, comprometer ou limitar o livre desenvolvimento da personalidade das mulheres por razões de género.
Discriminação indirecta: toda a discriminação contra as mulheres nas leis, nas políticas e nos programas que se baseiam em critérios aparentemente neutros, sob o ponto de vista do género, mas que de facto se repercutem negativamente nas mulheres. As leis, as políticas e os programas que são neutros, sob o ponto de vista do género, podem perpetuar involuntariamente os efeitos de discriminações passadas.

 

É de lamentar esta omissão, pois as referidas definições são importantes na interpretação da lei. A primeira ajuda a enquadrar a violência doméstica contra as mulheres, relacionando-a com o exercício desigual de poder, e a segunda define como discriminatórias as leis, políticas e programas que se pretendem neutrais em termos de género, mas que, na realidade, perpetuam as desigualdades já existentes na sociedade.

Sobre a abrangência da lei

Finalmente, uma das mais importantes alterações do Anteprojecto refere-se à introdução, no final da Lei nº 29/2009, dos dois artigos seguintes:

  • Artigo 36º, Igualdade de género – As disposições da presente lei aplicam-se ao homem, em igualdade de circunstâncias e com as necessárias adaptações.
  • Artigo 37º, Salvaguarda da família – A aplicação da presente Lei deve ter sempre em conta a salvaguarda da família.

Começando pelo Artigo 36º, é necessário dizer que ele vem distorcer completamente a coerência do Anteprojecto. Tratava-se de um Anteprojecto de lei que visava proteger especificamente as mulheres por se reconhecer que são não só as principais vítimas, como também por se encontrarem em desigualdade de poder nas relações na família e na sociedade. Ao incluir os homens, está-se a desvirtuar o sentido essencial da iniciativa. Por outro lado, resta saber como é que se irá aplicar este artigo? E porque é que a lei mantém no título as mulheres como destinatárias, bem como em todos os outros artigos antes do 36º? E o que significa igualdade de circunstâncias? Será quando houver homens que estejam em condições de subalternização na família?

E quanto ao Artigo 37º, muitas mais dúvidas são suscitadas. O que significa dizer: “A aplicação da presente Lei deve ter sempre em conta a salvaguarda da família”? Será que nunca se poderá penalizar um agressor por se estar a pôr em risco a família? Será que este artigo poderá anular os artigos anteriores?

Síntese da Comparação entre o Anteprojecto e a Lei nº 29/2009

A tabela seguinte mostra as alterações que o Anteprojecto sofreu, sintetizando o que temos vindo a debater:

 

O que foi retirado:

  • O Preâmbulo, que contextualizava o Anteprojecto no quadro legal nacional e internacional e enquadrava a violência doméstica contra as mulheres como violência de género.
  • O 2º parágrafo dos objectivos, que alargava o âmbito da lei à prevenção e assistência às vítimas.
  • Algumas das medidas de segurança (medidas cautelares), nomeadamente, retirar temporariamente o agressor da casa em que coabita com a mulher agredida, proibir o agressor de passar perto da casa e do local de trabalho, entre outras.
  • A prisão preventiva do agressor que fazia parte das medidas para evitar que este agrida a mulher que denuncia.
  • As obrigações do Estado, por exemplo, na educação para a igualdade, no comprometimento de todas as instituições na prevenção da violência, na investigação e na produção de dados nacionais.
  • Sobre o encaminhamento, em que se responsabilizavam todos os agentes que intervêm no atendimento a vítimas de violência (de instituições do Estado ou ONGs) em enviá-las ou para a polícia para se fazer a denúncia, ou para as unidades sanitárias para receberem assistência médica.
  • Sobre a assistência jurídica e patrocínio judiciário, em que se estabelecia o direito da vítima a receber estes serviços de forma gratuita.
  • Supressão dos mecanismos de controlo da aplicação das penas de trabalho na comunidade.
  • Disposição que previa que quando se verifica a existência do ciclo de violência num caso, o agressor não podia beneficiar de atenuantes.
  • O nome do crime “violência sexual” foi alterado, passando a chamar-se de “cópula não consentida”, o que deixou de fora outras formas de abuso sexual.
  • Punição de práticas tradicionais que atentam contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
  • Os “direitos processuais das vítimas”, que previam medidas apropriadas às características sociológicas deste tipo de violência, por exemplo, não ser submetida a acareação com o agressor e ser indemnizada por perdas e danos.
  • As “diligências” que se referiam ao modo como o processo deve tramitar da polícia ao Ministério Público.
  • As definições presentes no Anteprojecto são remetidas para um Glossário no final da Lei, mas são eliminadas duas delas: “exercício desigual de poder” e “discriminação indirecta”.

O que foi acrescentado:

  • No Artigo 18º, tipificação da “cópula com transmissão de doenças” como crime.
  • O Artigo 36º, sobre a “Igualdade de género”, que determina que: “As disposições da presente lei aplicam-se ao homem, em igualdade de circunstâncias e com as necessárias adaptações”.
  • O Artigo 37º, sobre a “Salvaguarda da família”, que decide: “A aplicação da presente Lei deve ter sempre em conta a salvaguarda da família”.

Em conclusão: a Lei aprovada não combate de forma eficaz a violência de género, reprime simplesmente algumas agressões no âmbito doméstico

A Lei nº 29/2009 da “Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher” não subscreve que este problema seja resultado da desigualdade de poder entre homens e mulheres na família, pelo que não se propõe a prevenir a violência de género. Do mesmo modo, também não compromete o Estado com a luta contra esta forma de violência, suprimindo a vertente de prevenção que estava presente no Anteprojecto, e reduzindo o âmbito de assistência à vítima. Basicamente é mantido o carácter de criminalização do agressor, o que é muito menos do que foi proposto. Enquanto não se reconhecer que a violência doméstica contra as mulheres é violência de género, não se poderão conceber e implementar programas eficazes para a sua prevenção, que passa antes de mais pela educação das jovens gerações para a igualdade e a solidariedade.

No entanto, apesar do que foi acima exposto, mesmo com todas as omissões, silêncios e até distorções, esta lei é o instrumento legal de que dispomos e tem que se encontrar a melhor maneira de o pôr em prática. Isto implicará não só a sua divulgação à letra, mas também, e sobretudo, um amplo debate com todas e todos que devem intervir neste âmbito.

Referências:
BLAY, Eva A. (2003). Violência contra a mulher e políticas públicas. In: Estudos Avançados, vol.17, nº 49. pp. 87-98.
CABAÑAS, Ana C. (2001). Violencia contra las mujeres, un problema de poder. In: A. Cabañas, G. Subirás, Mujeres contra la violencia: una rebelión radical. San José: CEFEMINA.

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