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Género e poder local

Conceição Osório

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 28, Novembro de 2009

 

Esta apresentação é resultado de um trabalho realizado no final de 2008, nos distritos de Tambara e Machaze, na província de Manica, com o objectivo principal de analisar como os processos de descentralização contribuem para aumentar a participação das mulheres em espaços públicos de poder.

Anteriormente, em 1998, aquando da realização das primeiras eleições autárquicas, já tínhamos estudado o acesso por parte das mulheres ao poder autárquico, nesta mesma perspectiva de analisar as valências que o poder local contém para a visibilidade da acção política feminina (Osório et al., 2001).

O que nos interessava nessa altura e o que nos interessou agora com esta pesquisa, era caracterizar a participação das mulheres em órgãos de poder local. Essa caracterização fez-se em torno de três eixos:

  1. O que diz a lei sobre a participação das mulheres nas instâncias comunitárias, tanto do ponto de vista das quotas, como da intencionalidade de alterar relações de poder;
  2. Como se faz o acesso das mulheres aos Órgãos de Poder Local e Participação Comunitária, tanto no campo das motivações como no campo das mediações. Procurámos aqui reconhecer o perfil das mulheres que estão nas Instituições de Participação e Consulta Comunitária (IPCC), principalmente no que respeita aos mecanismos de adesão;
  3. De que modo a presença das mulheres nas instâncias de poder local contribui para alterar as relações sociais de género, seja trazendo para os conselhos locais os problemas que afectando as comunidades, são do domínio feminino, como a água, seja permitindo o acesso aos fundos comunitários.

Para encontrarmos respostas para estes problemas entrevistámos mulheres e homens (em grupo e por sexo) das IPCCs, desde Fóruns locais, Conselho Consultivo de Posto Administrativo (CCPA), Conselho Consultivo de Distrito (CCD) e autoridades comunitárias. Foram também entrevistados funcionários do Estado, principalmente ao nível da administração local (distrito, localidade e povoação) e das Equipas Técnicas e dos Programas de Apoio à Descentralização, membros das ONGs que apoiam localmente as IPCCs e associações beneficiadas com os fundos locais. Foram entrevistadas um total de 166 pessoas, mulheres e homens.

Os distritos de Tambara (fronteira com Tete e Sofala) e Machaze (fronteira com Inhambane e Gaza, Zimbabwe, Sofala), seleccionados como unidades espaciais de estudo, são dois dos distritos mais pobres e isolados da Província de Manica, com deficientes sistemas de comunicação e sem acesso a bancos comerciais nem sistemas de crédito formal. Eles espelham situações extremas dentro da província, sendo ilustrativos das dificuldades que decorrem da implementação dos processos de descentralização.

A Lei

Debatemos em seguida a principal legislação existente em Moçambique sobre descentralização.

Antes de mais, é de assinalar a Revisão Constitucional de 1990, que consagra a separação de poderes e o pluralismo político, sendo renovados os princípios de desconcentração e descentralização, no quadro da instituição de um Estado de Direito Democrático.

Com a Constituição de 2004, define-se os princípios que orientam a Administração Pública em Moçambique, nomeadamente a articulação entre a descentralização e a desconcentração, e a continuação de um poder de Estado caracterizado pelo controlo e intervenção.

A Revisão Constitucional de 1996 (Lei nº 9/96)1, que orienta os termos de funcionamento do poder local, inicia um período de elaboração de dispositivos legais que visam reforçar as acções de desconcentração e descentralização, tomando o distrito como unidade territorial de desenvolvimento. Deve-se assinalar igualmente a publicação do pacote autárquico no final da década de 90, incluindo o regime de financiamento e do património das autarquias, a criação de 33 municípios e a realização em 1998 das primeiras eleições autárquicas2.

Em 2005, 2006 e 20083 são definidas, respectivamente, as competências, a estratégia de desenvolvimento, o regime financeiro e patrimonial e a criação de novas autarquias. Estes dispositivos, que regulam a tutela administrativa do estado, não clarificam o grau de autonomia das autarquias, principalmente quando a lei mantém sempre o princípio de subordinação ao poder do estado, transparecendo a possibilidade de coacção ilimitada sobre o poder local. É esta questão que permite que se fale em “democracia sob controlo” e num controlo dos processos e mecanismos de descentralização, como se constata pela Lei nº 6/2007: os poderes que são conferidos aos órgãos locais são sempre passíveis de serem revistos, tutelados e controlados pelo estado. Significa que o conceito de autonomia é limitado pela liberdade que é conferida ao estado para intervir e “desregular”. Esta situação agrava-se quando se assiste actualmente a práticas de partidarização das instituições estatais, particularmente visível ao observar-se o funcionamento do poder local e a sua dependência do financiamento do estado.

No início da década de 2000, com o Decreto nº 15/2000 e o Diploma Ministerial nº 107, são regulamentadas as atribuições das autoridades comunitárias, e as formas e áreas de articulação entre estas e os órgãos locais do estado4.

A importância do Decreto nº 15/2000 e da sua regulamentação pelo Diploma Ministerial nº 107-A/2000 é a definição de uma filosofia de descentralização assente na combinação das formas de organização e gestão tradicional dominante nas zonas rurais (pela valorização e reconhecimento das autoridades comunitárias), com a instituição dos conselhos locais como órgãos de consulta das administrações locais. São estes dispositivos que vão fundamentar o funcionamento das IPCC e o quadro legal que as suporta.

Entre as competências das autoridades comunitárias, previstas no Diploma Ministerial nº 107-A/2000, salienta-se o desenvolvimento de “medidas educativas preventivas dos casamentos prematuros” (artigo 5, alínea l) e a mobilização “dos pais e encarregados de educação para mandar os filhos à escola” (artigo 5, alínea s). Estas atribuições, que poderiam constituir um elemento importante para o envolvimento obrigatório das autoridades comunitárias na eliminação da desigualdade de género, ao serem incluídas numa listagem de deveres de carácter geral perdem o seu sentido como fundamento dos direitos das pessoas, previstos na Constituição.

O processo de descentralização, iniciado no final dos anos 90 com a intervenção comunitária na planificação distrital, é inscrito no quadro legal através da Lei nº 8/2003, que estabelece “princípios e normas de organização, competências e funcionamento dos órgãos locais do estado nos escalões de província, distrito, posto administrativo e de localidade” (Lei nº 8/2003, Sumário). Pelo Decreto nº 11/2005 é aprovado o regulamento dos órgãos locais do estado5, que define o distrito como unidade territorial da organização e funcionamento do estado (art. 10), explicitando os princípios da desconcentração e desburocratização, a articulação entre os órgãos locais do estado, as comunidades e suas lideranças e os mecanismos de participação dos cidadãos. Este Decreto é um passo determinante para a implementação de uma governação participativa, pois devolve à comunidade a possibilidade de intervir na tomada de decisões sobre as estratégias de desenvolvimento. No entanto, permite recuos no processo de descentralização ou mesmo partidarização das instâncias locais, considerando que todo o articulado cria a possibilidade de o estado limitar a participação comunitária, seja pelo controlo directo no funcionamento das IPCC, seja pela partidarização.

No que respeita concretamente aos direitos humanos das mulheres, se a questão da competência que é conferida às autoridades comunitárias, de preservar os valores culturais, não for devidamente explicitada (em função dos princípios constitucionais de igualdade e não discriminação), a hierarquia de poder em função do sexo ganha, porque inclusa no quadro legal, uma legitimidade que torna mais difícil a luta pelos direitos humanos das mulheres.

Ainda no que respeita ao quadro legal é necessário mencionar a Lei nº 12/2005, de 23 de Dezembro, que estabelece a criação do Orçamento de Investimento e Iniciativas Locais (OIIL), permitindo às IPCC dispor de fundos anuais para aplicação a projectos propostos pelas comunidades6.

Finalmente, os Decretos nº 5/2006 e nº 6/2006, ambos de 12 de Abril, definem a estrutura e o estatuto orgânico dos governos distritais, destacando-se como importantes a transformação da administração distrital em agente de desenvolvimento, a criação dos serviços distritais e o alargamento das áreas de competência.

A regulação do processo de descentralização

É em 2008 que foi aprovado o Guião sobre a Organização e Funcionamento dos Conselhos Locais7 (que concretiza o documento “Planificação e Consulta Comunitária, Guião para Organização e Funcionamento”)8 que pretende clarificar e facilitar a implementação da Lei nº 8/2003, de 19 de Maio, e do Decreto nº 11/2005, de 10 de Junho, sendo neste documento que se define que “deve ser garantida uma representação da mulher nunca inferior a 30%” (Cap. VI, secção I: art. 39, 10).

O que verificamos no nosso estudo é que do ponto de vista da descentralização os distritos de Tambara e Machaze cumprem os requisitos legais de representação feminina na ordem dos 30%. No entanto, e como a pesquisa demonstra, a participação das mulheres nas IPCC ainda não contribuiu para alterar as hierarquias de género.

Tal como foi anteriormente analisado, a legislação sobre a composição e as funções das IPCC partem de um princípio de equidade que não está baseada na igualdade de género. Significa que a presença de mulheres é considerada, tanto na Lei como nos discursos e nas práticas dos órgãos do poder local, como factor determinante e suficiente para abalar as estruturas da subalternidade feminina. Por esta razão, mesmo quando a legislação prevê o desencorajamento de práticas culturais assentes no poder masculino, como é o caso dos casamentos prematuros, constata-se a manutenção de um modelo cultural construído (e permanentemente reproduzido) na exclusão das mulheres como sujeito de direitos.

Se o desenvolvimento e a regulamentação dos processos de descentralização e desconcentração, previstos no quadro legal que acabámos de enunciar, permite alargar a inclusão social e a participação comunitária na tomada de decisões, a natureza centralizada do estado pode transferir-se para o funcionamento das IPCC. Este facto cria condições para reforçar o controlo na selecção dos membros das instituições de participação comunitária e na identificação e partilha dos projectos a serem financiados, por uma clientela que gira em torno do partido no poder. Isto significa que as IPCC podem simultaneamente ser um espaço de aprofundamento democrático e exercício da cidadania, e um espaço de dominação e hegemonia de um pensamento único, que pode, ou não, traduzir-se na eliminação camuflada (ou não) da diferença e da diversidade.

Em relação à importância e significado que as IPCC podem ter na satisfação das necessidades práticas e estratégicas das mulheres, o cenário que acabámos de caracterizar pode contribuir (ao incentivar o acesso das mulheres às instâncias de poder) para gerar rupturas com o modelo de dominação, mas também pode reforçar os mecanismos de subordinação, legitimando as identidades de género.

As mulheres e poder local

Ao realizarmos este trabalho partimos do pressuposto que se o poder local pela sua natureza de provimento de serviços responde a necessidades práticas das mulheres (como a questão da produção de comida para a manutenção da família, ou a busca de água), isto pode motivar a participação feminina nas instâncias comunitárias.

Na realidade, os papéis e as funções sociais conferidas à mulher no modelo de dominação dão-lhe também um conhecimento privilegiado dos problemas que afectam o quotidiano das comunidades. Através do trabalho doméstico (com tudo o que isso comporta, incluindo o trabalho na machamba), as mulheres desenvolvem um conjunto de disposições que permitem uma aproximação e familiarização com as realidades locais, o que pode potenciar a valorização da sua participação nas IPCC, permitindo-lhes o acesso a recursos (sejam eles materiais, como o fundo dos “7 milhões”, sejam eles simbólicos como a legitimidade no uso da “palavra”).

Quem são e como acedem as mulheres às IPCC? O quadro seguinte apresenta as suas principais características:

Mulheres Homens
Idade Entre 20 e 30 anos 0 3
Entre 30 e 50 anos 15 40
Mais de 50 anos 7 36
n/resposta 5 2
Pertença partidária Sim 17 23
Não 0 0
n/resposta 10 58
Habilitações Entre a 1ª e a 3ª 2 10
Entre a 3ª e a 6ª 4 18
Mais de 6ª 1 15
Alfabetização 5 7
Não estudou 7 6
n/resposta 8 25
Estado civil Solteira(o) 0 1
Casada(o) 12 26
Polígamos 0 51
Viúva(o) 12 2
Abandonada(o) 1 0
n/resposta 2 1

 

 

No nosso trabalho constatou-se a existência de três mecanismos de acesso às IPCC (tanto para mulheres, como para homens): nomeação, eleição “de mão no ar”, eleição por voto secreto.

A nomeação e a eleição “de mão no ar” conduzem a que as escolhas das mulheres recaiam naquelas cujo perfil se coaduna com os papéis sociais socialmente conferidos às mulheres e com a instrumentalização político-partidária das IPCC. Significa que as mulheres entrevistadas são, na sua maioria, viúvas e membros da OMM ou então casadas com lideranças locais. Esta interferência das estruturas partidárias na selecção reforça uma visão que confunde o partido com o estado, que pode resultar numa percepção por parte das populações que para participar ou ter acesso a benefícios, tem que ser membro do partido no poder.

Com frequência, deparamo-nos com situações em que as mulheres não distinguem nomeação com eleição, estando presente no mesmo discursos mecanismos de acesso antagónicos como podemos ver pelas seguintes falas:

  • “Fui seleccionada ao nível da comunidade para membro do CCPA mas não sabia para o que estava a ser escolhida” (mulher do CCPA em Búzua);
  • “Fui convocada pelo fumo (chefe local) para participar numa reunião e assim fui eleita” (mulher do CCPA em Búzua);
  • “Fui eleita depois de seleccionada pela OMM” (mulher do CCPA em Nhacafula);
  • “Fui eleita pela população, não sei porque fui eleita” (mulher do CCPA no Save – Urima).

Esta questão remete-nos para a reflexão sobre uma concepção de democracia condicionada por um conjunto de factores, que vão desde a história do país (legitimação da autoridade, seja da tradicional, seja da do Estado, ambas investidas de um poder cuja fonte se situa fora das comunidades que governa), até ao modelo cultural que tem a obediência como componente estruturante da identidade feminina. Este modelo cultural exprime-se através de uma pluralidade de dimensões que pelos processos e mecanismos de socialização “domesticam” as mulheres, não apenas no sentido da casa e dos outros como espaço de visibilidade, mas no sentido da dependência e submissão ao “outro”.

Por esta razão, a violência doméstica, a feitiçaria, a kopahira e os casamentos prematuros apenas são referidos pelos/as entrevistados/as depois de directamente questionados/as. Consideradas como pertencendo ao mundo do privado e da autoridade conferida por referências culturais tomadas como imutáveis, estas questões não são apresentadas como entraves ao desenvolvimento e ao combate à pobreza.

Por outro lado, e se atendermos aos constrangimentos que dificultam a participação política das mulheres, constatou-se que possivelmente pelo facto da maioria não ser casada com homens que pertencem a estruturas do poder político, não foram encontrados os conflitos que normalmente rodeiam o acesso das mulheres ao poder político, embora em todos os casos a participação das mulheres tenha sido acordada com os familiares.

A questão que se coloca no acesso das mulheres às IPCC, para além dos constrangimentos de ordem partidária que também atingem os homens, é a hierarquização dos problemas debatidos (a comercialização e a ausência de infra-estruturas são problemas “nobres” e públicos e os casamentos prematuros, a violência doméstica e até a água são problemas de ordem privada e, portanto, femininos), o acesso aos recursos e à formação, que no fundo correspondem ao ciclo de delimitação e diferenciação de papéis sociais que mantém em desigualdade as mulheres.

A ocupação das IPCC pelas mulheres

Ao longo do nosso trabalho ficou evidenciado que a participação das mulheres nas IPCC não põe em causa a estutrutura de dominação, como é o caso da poligamia e do casamento prematuro, embora muitas destas mulheres pertençam a círculos do poder, como a OMM, onde desenvolvem maiores níveis de intervenção.

Muitas das nossas entrevistas, desde as que foram feitas aos funcionários do estado até aos membros das IPCC, mostram que o silêncio e a obediência doméstica à vontade masculina são transpostos para a forma como as mulheres exercem as suas funções nas IPCC, como fica comprovado pela fala destas mulheres:

  • “As mulheres podem falar mas quem tem prioridade são os homens, os primeiros a falar são os homens” (mulher no CCPA de Nhacafula);
  • “Às vezes eu tenho uma boa contribuição para dar mas antes de terminar mandam calar. Eles só valorizam a opinião dos homens” (mulher do Fórum Local na localidade de Chipudje).

Por outro lado, e embora esteja definido que as IPCC têm a competência para discutir tudo aquilo que afecta o bem-estar da comunidade, a grande maioria dos e das entrevistadas afirmaram que nunca falaram de casamentos prematuros, da desistência escolar, da kopahira, a pitakhufa, como se na realidade esses não fossem problemas. Este silenciamento “consentido” de fenómenos reveladores da permanência de uma estrutura de género caracterizada pela violência, não permite que as IPCC sejam espaços de ruptura na desigualdade. A separação entre problemas públicos e problemas privados, estes quase sempre concebidos como da ordem da cultura e portanto do inquestionável e até tomados como parte da identidade local, impedem que a descentralização se reflicta num aprofundamento do sistema democrático e que as instâncias de participação comunitária se transformem em espaços de inclusão social.

No que respeita à participação feminina, muitos dos nossos entrevistados, principalmente os mais velhos e com mais autoridade nas comunidades, referem-se à participação das mulheres como se eles “lhes concedessem espaço” para falar, sendo que a questão como dizem alguns é que:

  • “Elas não têm a noção do negócio” (autoridades comunitárias em Nhacolo, Tambara);
  • “É fácil para os homens captarem a informação. A mulher já vem para a reunião com o pensamento em outros trabalhos” (autoridades comunitárias, Chitobe).

A capacitação realizada no âmbito das equipas técnicas poderia contribuir para alterar a perspectiva da legitimidade da dominação masculina. No entanto, ficou evidente, tanto pelas entrevistas realizadas aos membros das equipas técnicas como pela análise dos módulos de formação, que a capacitação realizada se refere apenas a aspectos técnicos de funcionamento, nomeadamente os processos e mecanismos que têm a ver com a elaboração de projectos. Ou seja, os dispositivos legais que dizem respeito aos direitos humanos das mulheres, como a Lei de Terras e a Lei da Família continuam a ser ignorados. Ora isto não contribui para que as IPCC sejam um espaço de ruptura com as relações de poder dominantes.

Outros factores como o trabalho doméstico e na machamba, as altas taxas de analfabetismo, a ausência de documentação que impede as mulheres de concorrerem aos fundos, e principalmente, a domesticidade construída e treinada ao longo de toda uma vida (impedimentos em realizar deslocações) acrescem também as dificuldades de participação das mulheres nas sessões de formação.

Relativamente ao acesso aos fundos por parte das mulheres, muitos/as entrevistados/as afirmam que é bastante reduzido o número de mulheres beneficiadas com os fundos dos “7 milhões”. As razões encontram-se na falta de formação para a elaboração de projectos, como no modelo cultural que desclassifica as suas ideias e opiniões:

  • “Quem sabe mais do dinheiro são os homens. (…) Até nos assustam, dizem que para levar esse dinheiro tem que ter casa de alvenaria, bois e carros” (mulheres do CCPA no Save-Urima Sede).

Mas embora em número reduzido, encontrámos mulheres beneficiárias dos “7 milhões” e conhecedoras da Lei e da necessidade de devolução do dinheiro e, o que foi muito raro durante a pesquisa, que realizam trabalho de auscultação junto das comunidades, conquistando reconhecimento e legitimidade nos Fóruns e Conselhos Locais.

Há, no entanto, um sentimento partilhado por alguns dos/as nossos/as entrevistados/as, de que o processo de descentralização tem permitido romper com estereótipos e preconceitos, estimulando a criação de emprego (fora do âmbito do trabalho doméstico), conferindo à escola um papel central na educação e criando expectativas para uma vida melhor. Quando muitas das nossas entrevistadas respondem, ao serem questionadas sobre o que desejam para as suas filhas, que querem que elas estudem, tenham um trabalho e uma casa, significa que o modelo patriarcal começa a ser abalado. Como nos disse uma entrevistada:

  • “Sou analfabeta. Não gostaria que a minha filha o fosse. Gostava que ela estudasse e escolhesse o seu futuro, com quem ficar, e que não fosse vítima da tradição em que a mulher é escolhida!” (mulher no CCPA de Búzua);
  • “Desde a existência do CCPA muita coisa mudou. Antigamente davam parto em casa e agora vão ao hospital e usam água tratada para beber e sabem que as crianças devem ir à escola” (mulher no CCPA em Búzua).

Mesmo que este e outros discursos possam traduzir apenas o que a entrevistada julga ser a expectativa das entrevistadoras, o facto de reconhecer como positivas essas práticas, indicia que a formação e as discussões nas IPCC podem potenciar mudança de comportamentos. A questão que se coloca, e que não foi possível a pesquisa confirmar, é que o processo de descentralização esteja a contribuir para a alteração das relações de poder, ou seja, que as necessidades práticas enquanto componentes do combate à pobreza, correspondam à satisfação de necessidades estratégicas.

Tomando em consideração estes resultados, apresentamos em seguida algumas sugestões para servirem de base para um debate sobre o desempenho da sociedade civil.

Como pode contribuir a sociedade civil para a igualdade de género nos distritos de Machaze e Tambara?

  • No apoio directo a projectos como associação de camponeses
  • Na titulação de terras
  • No apoio às Equipas Técnicas de capacitação das IPCC
  • No acesso à escola e combate ao abandono escolar
  • Em programas de apoio à saúde sexual e reprodutiva.

Problemas na actuação das ONGs

  • Dificuldade de estabelecer estratégias autónomas em relação ao governo local
  • Insuficiente formação em género e/ou ausência de uma perspectiva de género na sua acção
  • O relativismo cultural e a justificação da dominação masculina
  • Desarticulação na actuação.

Como mudar

i. No interior das ONGs é muito importante:

  • Ter um Código de Ética para regular as relações com o governo e com outros actores
  • Definir o perfil das pessoas que actuam na área dos direitos humanos das mulheres
  • Definir planos de acção de modo a romper com a cumplicidade entre cultura local e violação dos direitos humanos.

ii. Na articulação entre ONGs

Sugere-se a criação de Fóruns Distritais para:

  • Definir uma estratégia comum entre ONGs de participação (clarificação de critérios) nos CCDs
  • Definir os campos e os grupos alvo de intervenção
  • Definir acções de coordenação no tempo e no espaço
  • Desenvolver em permanência formação em direitos humanos e em particular direitos humanos das mulheres.

iii. A Formação dos membros e activistas das ONGs é importante:

  • Deve-se debater a questão da teoria e da sua relação com a prática
  • Deve fornecer instrumentos para compreender e actuar sobre a realidade social (qual a situação dos direitos humanos das mulheres e como/o quê podemos mudar?)
  • Deve permitir construir uma consciência de género ao mesmo tempo que fornece competência técnica (o caso da utilização dos fundos locais).

Notas:

  1. Lei 9/96, Boletim da República, I Série, nº 47, I Suplemento, 22 de Novembro de 1996.
  2. Lei 2/97, Boletim da República, I Série nº 7, 2º Suplemento, de 18 de Fevereiro de 1997; Lei 7/97, Boletim da República, I Série nº 22, 4º Suplemento de 31 de Maio de 1997; Lei 10/97, Boletim da República, I Série nº 22, 4º Suplemento, de 31 de Maio de 1997; Lei 11/97, Boletim da República, I Série nº 22, 4º Suplemento, de 31 de Maio de 1997.
  3. Ministério da Administração Estatal (MAE) (2005), Política e Estratégia de Desenvolvimento Autárquico em Moçambique, para 2006-2010; Decreto nº 33/2006, Boletim da República, I Série, nº 35 de 30 de Agosto; Lei 1/2008, Boletim da República, I Série de 16 de Janeiro de 2008; Lei nº 3/2008, Boletim da República, I Série, nº 16 de 2 de Maio de 2008.
  4. Decreto 15/2000, Boletim da República, I Série nº 24, de 20 de Junho de 2000; Diploma Ministerial nº 107-A/2000, Boletim da República I Série nº 34, de 20 de Agosto de 2000.
  5. Lei 8/2003, Boletim da República I Série nº 20 de 19 de Maio de 2003; Decreto 11/2005, Boletim da República I série nº 23, 2º Suplemento, de 10 de Junho de 2005.
  6. Prevê-se no futuro que este fundo seja alocado aos distritos de forma diferenciada, tomando como critérios, por exemplo, a população e o nível de pobreza.
  7. Ministério da Administração Estatal (2008), Proposta de Guião sobre Organização e Funcionamento dos Conselhos Locais, Moçambique.
  8. Ministério da Administração Distrital, MADER, Ministério do Plano e Finanças (2003), Participação e Consulta Comunitária na Planificação Distrital, Guião para Organização e Funcionamento.

Referências:
Osório, Conceição; Mejia, Margarita; Andrade, Ximena, 2001, Mulher e Autarquias. Maputo: C.E.A./NORAD

 

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