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“Casamentos” prematuros: direito, Estado e práticas culturais

06
Jul
2015

A autora deste texto reflecte sobre a necessidade de questionar a abordagem de combate aos “casamentos” prematuros que, embora sendo violações da legislação e políticas públicas adoptadas pelo país, estão resguardados pelo ambiente cultural.

A ordem jurídica dos Estados muitas vezes enfrenta limitações na sua execução, decorrente do facto das suas normas padronizadoras serem imbuídas de princípios gerais, abstractos, singelos demais para disciplinar acções crescentemente complexas.

Esta ordem, que sobretudo os agentes da administração da justiça devem aplicar, não consegue dar conta de maneira lógica de uma pluralidade de situações sociais, económicas, políticas e culturais cada vez mais heterogéneas. Organizada sob a forma de um código rigidamente binário (permitido/proibido, legal/ilegal e constitucional/inconstitucional) elas revelam-se ineficazes na regulamentação e tratamento de casos muito específicos e singulares (Faria: 1997).

Particularmente em relação à cultura, há uma postura de inacção, uma hesitação em tomar providências com vista a pôr termo a situações de clara violação dos direitos humanos das mulheres e crianças, não obstante os compromissos assumidos internacionalmente.

Referindo-nos às crianças, os chamados “casamentos prematuros”, que assume grandes proporções em Moçambique, ferem directamente os instrumentos legais regionais e internacionais, designadamente a Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criança (ratificada por Moçambique em 1998). Este dispositivo legal, reconhecendo a existência de práticas culturais atentatórias da dignidade das crianças, insta os Estados Partes a adoptar medidas adequadas por forma a eliminar todas as práticas sociais e culturais que afectem o bem-estar, a dignidade, o crescimento normal e o desenvolvimento da criança (art. 21).

Em algumas províncias onde realizámos formações a oficiais da polícia ligados aos Gabinetes de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de Violência e em entrevistas a magistrados judiciais e do ministério público, ficam patentes posicionamentos que manifestam a conflitualidade entre a garantia de direito a certas formas culturais prevalecentes nos locais e a garantia a direitos humanos pessoais essenciais, com enfoque especial nos direitos das crianças.

Ao interrogarmo-nos sobre o combate aos casamentos prematuros há uma abordagem sectorial homogénea sobre o significado que é conferido a esta prática. Assim, é comum ouvirmos expressões como: “Ah, isso é hábito aqui desta zona, pouco podemos fazer contra pois os pais e algumas seitas religiosas estão directamente envolvidos”.

Deste modo, estas práticas estão resguardadas pelo seu ambiente cultural. Todavia, elas não são apenas violações da legislação e políticas públicas adoptadas pelo país como também a sua manifestação mais ignóbil.

Poderíamos pensar que se qualquer pessoa dentro dessas comunidades declarar claramente a sua intenção de não ser submetida a certos tratamentos da sua cultura que resultem em clara violação de direitos humanos, tem direito a ser atendida com base em dispositivos como até a própria Constituição da República, que garante direitos a todos os cidadãos e cidadãs independentemente da sua origem. Porém, como esperar que crianças ou qualquer pessoa profundamente inserida no seu contexto cultural manifeste tal liberdade de pensamento, se uma das principais características dessa cultura é inibir-lhe tal capacidade de manifestação?

Torna-se assim necessário garantir-lhes essa capacidade. As crianças devem ser tidas como sujeitos de direitos. Se as resoluções se concentrassem nas meninas e não somente nos seus pais ou tutores, que podem alienar-lhes direitos a seu favor; se às mesmas fosse dada a possibilidade de escolher, por livre e espontânea vontade (fora do alcance das pressões de seu grupo) entre o estudar e casar; se todos se posicionassem favoráveis a uma acção mais directa, práticas torpes como esta já teriam sido reduzidas mesmo contra a feroz resistência sócio-cultural local.

por: Ana Maria Loforte

Referência:

Faria, José Eduardo, 1997, Direitos humanos e globalização econômica: Notas para uma discussão. In: Estudos Avançados, vol.11, 30, pp. 43-53.

 

2 comentários a ““Casamentos” prematuros: direito, Estado e práticas culturais”

  1. YANEIXIS diz:

    O combate contra os casamentos prematuros é uma obrigação de todos: juntos podemos formar um mundo melhor.

  2. Mano Go diz:

    A legislação precisa ser mais contundente contra casos comprovados… pais das meninas e supostos maridos devem ser exemplarmente punidos….

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