Breves
Uma reflexão em torno das práticas de luta pela igualdade de género
O autor deste texto de opinião critica as metodologias de “trabalhos femininos” feitos por homens, como perspectiva de desconstrução da desigualdade entre homens e mulheres.
Dentro do campo de luta pela igualdade de género, a desconstrução do “lugar do feminino” e dos papéis sociais entre homens e mulheres, esteve sempre presente nas referências ao patriarcado, enquanto sistema que transforma a desigualdade entre os sexos em factor de discriminação.
É com base nessa lógica que alguns programas pela igualdade de género foram incorporando nas suas legítimas lutas metodologias de trabalho que apregoavam, de forma subjacente, a ideia de que uma mudança na concepção de papéis/funções, leva automaticamente a um maior reconhecimento dos direitos inalienáveis das mulheres.
Baseados nesse princípio, têm sido elaborados programas que têm em vista a inclusão de homens em tarefas tidas tradicionalmente como de mulheres, na perspectiva de que isso levará naturalmente à aceitação da inexistência de lugares/papéis pré-definidos para ambos os sexos.
Segundo esta tese, uma vez quebrada a visão androcrática através do princípio da racionalidade prática, expressa no trabalho feminino feito pelos homens, que quase “sugere”, por analogia, aquela ideia marxista de que o que separa o homem do macaco é o trabalho, enquanto esteio da razão/reflexão; estarão criadas as condições para o surgimento de um homem novo, transformado e que não padece de misoginias, doença infantil dos machistas.
Reforçando esta tese, é comum nos espaços de afirmação digital (Facebook, WhatsApp, Instagram, etc.), encontrar retratos de homens cozinhando com legenda acima “hoje é o meu dia”; “Eu também lavo roupa” ou mesmo com trajes femininos perguntando “o que acham da minha versão feminina?”.
O objectivo deste texto não é questionar a liberdade de quem faz isso e muito menos desencorajar atitudes que propugnam, através destas práticas, a construção de um mundo sem desigualdades entre homens e mulheres. O que se pretende é o oposto, contribuir para o aprofundamento do debate/reflexão da eficácia delas no nosso quotidiano.
Por outro lado, a história já provou que estruturas de dominação podem coexistir com formas aparentemente normais de ser dos sujeitos. Hannah Arendt, proeminente filósofa alemã do século XX, foi boa em demonstrar isso no livro que escreveu sobre o caso Adolf Eichmann, um dos principais organizadores da matança dos judeus no decorrer da II guerra mundial.
Nas suas explanações ela relata que os nazistas não eram, por outras palavras, seres com unhas grandes, dentes afiados, que comiam carne humana e bebiam do seu sangue. Aliás, ficou surpreendida ao constatar, durante o julgamento, que Eichmann era um homem magro, de aparência calma e um rosto nada intimidante. Dizia ela, nas entrevistas, que os nazistas comportavam-se como homens normais, que ao voltarem a casa beijavam as esposas, abraçavam os filhos e brincavam com os seus cães.
De modo algum este retrato pesado simboliza aqueles que com todo gosto participam de programas que visam à desconstrução dos papéis sociais. Ele foi apenas um recurso usado na perspectiva popperiana, com vista a “falsear” as metodologias usadas nesses programas, para argumentar que não é linear que o efeito de “trabalhos femininos” nos homens, produza mudanças repentinas nas formas de pensar os valores sociais androcráticos.
Sebastião Vila Nova (2004), na sua obra Introdução à Sociologia (p. 122) já nos chama à atenção sobre o perigo do ritualismo, que ele define como uma forma de:
“Adaptação social na qual o indivíduo reproduz mecanicamente as formas de comportamento socialmente aceitas… sem que os valores subjectivamente significativos sirvam de estímulo ao seu desempenho social”.
Nesta perspectiva, os programas que têm na sua base os “trabalhos femininos” e outros, deparam-se com o desafio da “hidra ritualista” que não morre apenas com o corte de uma de suas cabeças – neste caso, o trabalho. Uma combinação de metodologias afigura-se como uma das opções.
O perigo de uma abordagem unidimensional está em conduzir a uma ideia de reciprocidade/ complementaridade nas relações sociais que não abala os sistemas de pensamento dominantes, como mostraram Conceição Osório e Ernesto Macuacua, na sua recente pesquisa sobre “Mulher e Democracia – Indo para além das quotas, caso das eleições autárquicas de 2018”.
Relacionado a isso, a Amnistia Internacional divulgou em 2017 que países escandinavos, como a Dinamarca, que possuem metas de cuidado à infância satisfatórias, níveis de distribuição igualitárias de tarefas domésticas e um parlamento com uma paridade de sexo próxima dos 50:50, possuem números assustadores de casos de violência sexual.
Portanto, é preciso não esquecer o lugar da leitura, da reflexão, do debate e do combate nas abordagens de luta pela igualdade de género. Antes da prática, é preciso ir de encontro aos significados subjectivos, lugar da reprodução dos sujeitos. Afinal, tal como os nazistas esconderam de muitos olhos os seus campos de tortura durante a II guerra mundial, todos possuem um sótão interior (o campo da irracionalidade), igual aos psicopatas dos seriados, em que “escondem”, “julgam” e “matam” os outros. É esse “lugar” interior que deve ser alcançado pela reflexão/razão, nem que para isso seja necessário a ressurreição do pai da psicanálise, Sigmund Freud.
Maio de 2020
Romão Kumenya
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